quinta-feira, 4 dezembro 2025

PEC do Arrendamento divide Senado e povos indígenas em audiência pública

Por André Gonzaga, da Folha do Acre

Proposta que altera o artigo 231 da Constituição abre debate sobre autonomia produtiva e risco de arrendamento das terras indígenas; no Acre, comunidades avaliam impactos diretos na economia e na preservação ambiental

Em uma audiência pública marcada por tensão e divergências, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado discutiu, na última quarta-feira (3/12), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 10/2024. O texto, de autoria do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA) e apoiado por dezenas de parlamentares, entre eles os senadores Alan Rick (Republicanos) e Márcio Bittar (PL), pretende modificar o artigo 231 da Constituição Federal (CF) para permitir que povos indígenas produzam e comercializem livremente sua produção, com a obrigação da União de prestar assistência técnica.

A proposta mexe em um dos pilares do usufruto exclusivo das terras indígenas. Atualmente, a Carta Magna garante que essas áreas são inalienáveis e indisponíveis, cabendo apenas às comunidades decidir como utilizá-las. A PEC, ao introduzir termos como “arrendamento” e “parcerias”, abre espaço para que terceiros explorem economicamente os territórios, o que, segundo críticos, ameaça a autonomia e a proteção conquistadas há quase quatro décadas.

De um lado, defensores da emenda afirmam que ela representa uma oportunidade de modernização e independência financeira para os povos originários. De outro, organizações indígenas e socioambientais denunciam que o texto esconde interesses externos e pode fragilizar direitos fundamentais.

Passo a passo

A sessão foi conduzida pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE), com a participação de lideranças, representantes de entidades e especialistas.

Luís Ventura Fernández, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), abriu os trabalhos destacando que a PEC desconfigura o núcleo dos direitos indígenas, ao permitir arrendamento e contratos com terceiros.

Silvia Waiãpi, ex-deputada federal, defendeu a proposta, argumentando que comunidades devem ter liberdade para adotar técnicas modernas e alcançar autonomia econômica, sem depender de repasses governamentais.

Kleber Karipuna, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), classificou a PEC como inconstitucional e perigosa, por abrir brechas que fragilizam cláusulas pétreas da Constituição.

José Lucas Duarte, cacique da etnia Tukano, no Amazonas, apoiou parcialmente a medida, mas rejeitou o arrendamento. Para ele, indígenas precisam celebrar parcerias e contratos para garantir autossuficiência.

Márcio Santilli, presidente do Instituto Socioambiental (ISA), foi categórico: o arrendamento é inviável constitucionalmente. Ele apresentou dados que comprovam a cultura de produção e comercialização, sem necessidade de alterar a CF.

Argumentos contrários

Os opositores insistem que não há impedimento legal para que indígenas produzam e vendam seus produtos. O que falta, segundo eles, é demarcação e proteção efetiva das terras, além de políticas públicas consistentes. Santilli trouxe números que reforçam essa visão. Em 2023, o IBGE registrou R$ 17 bilhões em produtos extrativistas, enquanto a plataforma Origens Brasil movimentou R$ 21,2 milhões em 28 terras indígenas.

Além disso, iniciativas como turismo comunitário, apicultura, produção de mel, castanha e café especial já geram renda significativa. Para críticos, a proposta ignora essa realidade e tenta abrir caminho para interesses externos, colocando em risco a integridade cultural e ambiental dos territórios.

Argumentos favoráveis

Os defensores da proposta, como Silvia Waiãpi e parte das lideranças presentes, sustentam que a PEC garante autonomia produtiva e permite que indígenas avancem em áreas como agricultura e pecuária, sem depender exclusivamente de programas governamentais. Eles citam exemplos de comunidades que já utilizam técnicas modernas e buscam ampliar sua produção para alcançar independência financeira.

Recorte do Acre

No estado, a discussão ganha contornos particulares. Os senadores Alan Rick e Márcio Bittar, co-autores da PEC, defendem que a medida pode impulsionar a economia indígena local, especialmente em regiões como o Vale do Juruá e o Alto Rio Purus.
Entretanto, lideranças dos povos Ashaninka e Huni Kuin, como Francisco Piyãko e representantes da Federação do Povo Huni Kuin, já se manifestaram em entrevistas e atos públicos contra essas mudanças constitucionais que fragilizam direitos. Eles defendem que seus povos já produzem e comercializam de acordo com seus modos de vida e que o problema não é a falta de autorização, mas sim a ausência de políticas públicas e de proteção territorial.

Pano de fundo político

O debate ocorre em um momento em que o Brasil é pressionado internacionalmente por compromissos ambientais, especialmente após a COP 30. Alterar o artigo 231, considerado cláusula pétrea por juristas e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pode gerar repercussões externas e internas, colocando em xeque a credibilidade do país na defesa dos direitos humanos e da preservação da Amazônia.

Próximos passos

A PEC 10/2024 ainda está em fase inicial de tramitação. Após a audiência pública, os próximos passos envolvem:

CCJ: elaboração de relatório e votação interna.

Plenário do Senado: caso aprovada na comissão, será votada em dois turnos, exigindo apoio de três quintos dos senadores (49 votos).

Câmara dos Deputados: se passar no Senado, segue para dois turnos na Câmara, também com quórum qualificado.
Promulgação: se aprovada nas duas Casas, não vai à sanção presidencial. É promulgada diretamente pelo Congresso e passa a integrar a Constituição.

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