A recente polêmica envolvendo a marca Havaianas reacendeu o debate sobre os limites entre marketing, narrativa pública e estratégia empresarial. Longe de um simples “tiro no pé”, como parte da opinião pública tem sugerido, o episódio revela uma operação calculada, ancorada em fundamentos do direito empresarial, no valor da marca e em uma leitura sofisticada ,ainda que arriscada, do comportamento do consumidor contemporâneo.
Marca, lucro e estratégia: o que diz o direito
A Constituição Federal, em seu artigo 170, e o Código Civil (Lei nº 10.406/02), no artigo 966, definem empresário como aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada, com objetivo de lucro, mediante a organização dos fatores de produção , capital, trabalho, insumos e tecnologia. Nesse contexto, um elemento se sobressai: a marca.
Nos termos do artigo 122 da Lei nº 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial), a marca é o principal ativo simbólico de uma empresa. Para existir, precisa ser vista, reconhecida e debatida. Foi exatamente isso que a Alpargatas promoveu ao recolocar as Havaianas no centro da arena pública, ainda que ao custo de forte reação social.
A polêmica não foi acidental
Ao contrário do que se tem repetido em análises apressadas, a controvérsia não foi fruto de ingenuidade ou erro grosseiro. O episódio se insere no que especialistas chamam de guerra de marcas, marcada por narrativas mal recebidas, porém estrategicamente calculadas.
Filósofos e pensadores já discutiram, ao longo da história, a relação entre ação, intenção e expectativa. Aristóteles, em Ética a Nicômaco, ensina que toda ação humana visa a um fim (telos). Kant destaca a centralidade da intenção moral. Max Weber analisa a ação social como orientada por expectativas de resposta. David Hume observa que expectativas futuras se constroem a partir de padrões passados. Sêneca, por sua vez, alertava sobre os riscos de se viver apenas projetando resultados futuros.
A máxima é simples: toda ação carrega uma intenção e uma expectativa.
Dificilmente um time de marketing de uma multinacional do porte da Alpargatas deixaria de antecipar o grau de rejeição gerado. Na lógica da sociedade líquida, descrita por Zygmunt Bauman, a polarização não necessariamente destrói valor — muitas vezes o amplia. O cálculo implícito parece claro: enquanto uma parcela do público rejeita, outra consome com ainda mais intensidade.
Um histórico que ajuda a entender a narrativa
Fundada em 1907, com a marca Havaianas lançada em 1962, a empresa passou por diferentes controladores. Foi adquirida pelo grupo Camargo Corrêa em 1982 — conglomerado posteriormente investigado na Operação Lava Jato ,vendida em 2015 para a J&F Investimentos, dos irmãos Batista, por cerca de R$ 2,67 bilhões, e depois transferida ao grupo empresarial Rudins, da família Moreira Salles.
Esse contexto societário ajuda a compreender o eixo cultural e estratégico da marca, hoje inserida em um projeto global de posicionamento como fashion brand, menos dependente do mercado brasileiro e mais conectada a narrativas globais. Não por acaso, o mesmo grupo controla marcas como a Osklen e mantém conexões simbólicas com setores financeiros e culturais de grande projeção.
Diante desse cenário, classificar a polêmica como um “erro” pode ser uma leitura simplista. Não se trata, necessariamente, de um posicionamento político ideológico explícito, mas de uma aposta deliberada em visibilidade, ruído e reafirmação de marca.
Como diz o próprio texto-base: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. O marketing das Havaianas não parece ter sido um tropeço acidental, mas sim um tiro no alvo, com risco assumido, mira alinhada e plena consciência das consequências.
A crise das Havaianas não expõe apenas os dilemas de uma campanha publicitária. Ela revela como marcas operam em um ambiente onde controvérsia virou ativo, indignação virou métrica e o desconforto social, paradoxalmente, pode ser convertido em valor econômico. No capitalismo contemporâneo, nem toda crise é um erro , algumas são, simplesmente, estratégia.
