Pré-candidato do MBL repete estereótipos históricos e ignora a cultura local, como já apontaram pesquisadores da Ufac
O Acre voltou a ser alvo de ataques externos nas redes sociais. Em vídeo publicado no Instagram, Renan Santos (41), fundador do Movimento Brasil Livre (MBL) e pré-candidato à presidência da República pelo partido Missão, afirmou que o estado deveria retornar à condição de território federal. “O Acre estaria muito melhor se fosse administrado por um interventor”, disse, em tom de provocação. No entanto, a declaração não é apenas uma bravata política.
Ela ecoa um discurso antigo, que remonta a Euclides da Cunha em “À margem da história”, de 1909, onde o escritor descreveu a Amazônia como espaço “inacabado” e sem reconhecer o protagonismo das culturas locais. Os professores Francielle Maria Modesto Mendes e Francisco Aquinei Timóteo Queirós, ambos do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Acre (Ufac), analisam como esse olhar sobre a foi construído e ainda se mantém.
Mendes, em seu livro “Imaginário na Amazônia: os diálogos entre história e literatura” (Edufac, 2021), analisa como o autor constrói uma narrativa marcada pela ausência das vozes locais, reforçando a ideia de vazio e marginalidade. O texto mostra que a obra não apenas descreve, mas cria um imaginário literário que reforça estereótipos de atraso. Assim, a narrativa literária e histórica acaba se entrelaçando para sustentar uma visão colonizadora sobre a região.
Queirós, em artigo da coletânea “Pesquisa em Comunicação: jornalismo, raça e gênero” (Edufac, 2022), observa que Cunha apresenta a Amazônia como espaço carente de civilização, apagando os saberes e práticas culturais dos povos amazônicos. Essa crítica evidencia como o olhar colonizador invisibilizou protagonismos locais. Como complemento, é possível perceber que discursos midiáticos e políticos contemporâneos ainda reproduzem tais estereótipos, perpetuando a mesma lógica que já estava presente no início do século 20.
A retórica de Renan Santos é a continuidade dessa tradição, que insiste em ver a Amazônia como atraso. Essa visão ignora que o estado tem trajetória própria, marcada por lutas como a Revolução Acreana, e que sua população construiu modos de vida singulares, entre rios, florestas e cidades. Ao propor que “as melhores pessoas dos melhores estados” venham administrar o Acre, a liderança do MBL reforça a ideia de que o povo daqui não tem competência para decidir o seu próprio desenvolvimento. É a mesma lógica que, mais de um século atrás, legitimou a exploração da borracha e a tutela externa sobre a região.
Além disso, o pré-candidato à presidência pelo Missão ainda atacou a estrutura política do Acre. Pois é. Ele comparou o estado a um “bairro de São Paulo”, disse que não faz sentido ter três senadores e oito deputados federais e denominou a classe política de “lixo”, “bosta”, “parasitas” e “amadores”. Em tom de zombaria, chegou a ironizar que “até os dinossauros e extraterrestres que dizem morar aí vão comemorar” se fôssemos administrados por um interventor federal, a exemplo do que já ocorreu com o Rio de Janeiro. Sem surtir o efeito desejado, diga-se de passagem.
O senador Sérgio Petecão (PSD) reagiu e chamou o opositor de “filho de uma égua”, acusando-o de desconhecer a memória local. Mas a questão vai além da troca de insultos. Trata-se de enfrentar um padrão narrativo que insiste em tratar a região como ausência, como espaço sem cultura, sem voz, sem futuro. Esse suposto vazio, como mostram os professores Mendes e Queirós, é uma invenção. Não condiz com a realidade. Ribeirinhos, indígenas, migrantes nordestinos e populações urbanas compõem um mosaico cultural que desafia qualquer simplificação. O que existe, de fato, é a tentativa recorrente de justificar projetos de poder – e custe a quem custar.
Ao se apresentar como pré-candidato à presidência, Renan Santos escolhe repetir essa visão colonizadora. No fim do vídeo, ele pede que os acreanos que concordam com suas ideias de intervenção votem nele na próxima eleição. E aqui fica a provocação, caro leitor: se o futuro do Acre fosse decidido por quem o chama de atraso, você votaria nele?
