As reações do Legislativo, o protagonismo do Judiciário e o reposicionamento do Executivo compõem o mais recente capítulo de uma disputa que pode redefinir o funcionamento institucional do país.
Notoriamente, na política — essa que, devido à escassez cultural e educacional do povo, parece ser sempre um mundo sensível, um mundo das ideias — quando a exigência se dá pelo mundo inteligível (real), de Platão, na incessante busca pelo poder, observa-se, sobretudo na análise da moral política de Maquiavel, que os humores se transformam repentinamente. As amizades se firmam e se rompem conforme o lado em que o vento bate, não sendo observada, como deveria, a necessária orientação do imperativo categórico de Kant, segundo o qual devemos fazer aos outros aquilo que gostaríamos que nos fizessem.
Assim, vive-se uma sensação de utilitarismo, nos termos de Jeremy Bentham: tudo é tolerado para manter um estado de alegria ou felicidade, ainda que aparente. Isso reforça a percepção de que “o inferno são sempre os outros”, já explorada por pensadores existencialistas. Nesse ambiente, ganha força a discussão contemporânea sobre a Lei 1.079/50, especialmente o artigo 41, que permite a todo cidadão denunciar perante o Senado Federal os ministros do Supremo Tribunal Federal e o procurador-geral da República por crimes de responsabilidade (conforme os artigos 39 e 40 da mesma lei).
Algumas declarações e condutas recentes de autoridades têm provocado desconforto em relação ao legado de Montesquieu, sobretudo pela violação — ainda que indireta — do princípio da independência e harmonia entre os Poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal, no artigo 6º da Constituição do Acre e no artigo 5º da Lei Orgânica de Rio Branco. A percepção de parte da sociedade é a de que há uma tentativa de blindagem institucional, especialmente após questionamentos envolvendo o princípio do juiz natural (artigo 5º, inciso LIII), o que coloca em dúvida os pressupostos clássicos de freios e contrapesos.
Como reflexo, o Legislativo tem buscado respostas, materializadas na PEC 8/21, no Senado, e no PL 1.388/23. O tensionamento cresceu com a recente mudança de hermenêutica sobre a Lei 1.079/50, artigo 39, por meio de decisão cautelar nas ADPFs 1.259 e 1.260, proferida pelo ministro Gilmar Mendes. A decisão tem sido interpretada como a criação de uma situação de autocracia judicial, contrária à democracia liberal — uma democracia de juízes —, usurpando função legislativa e tirando do povo o direito de ter uma opinião diferente, sob o argumento de que a lei deve ser reinterpretada conforme a Constituição de 1988 para preservar garantias da magistratura e a separação entre os Poderes.
O debate gira em torno do processo de impeachment de ministros do STF. Diferentemente do presidente da República — cujo processo não pode ser aberto por maioria simples —, o processo relativo a ministros poderia ser instaurado desta forma. Soma-se a isso a determinação de que votos e decisões judiciais não podem fundamentar denúncias contra magistrados. Tal mudança remete ao episódio histórico associado ao rei Luís XIV — “o Estado sou eu” — em contrariedade ao princípio democrático segundo o qual os políticos são apenas representantes da soberania popular (Constituição Federal, artigo 1º, parágrafo único, e Lei 9.709/98).
Em uma democracia ideal, como descreve Norberto Bobbio, o poder é do povo. Entretanto, a decisão legislativa segue em curso, pois parte do Parlamento acredita que a responsabilização por atos típicos da função pode colocar em risco a independência do Judiciário. Por isso, o tema exige análise cuidadosa, especialmente diante da limitação da liberdade — mais especificamente da liberdade positiva, segundo Isaiah Berlin, entendida como “a liberdade limitada pelas vontades e mandamentos externos”.
À luz da dialética de Hegel, a tese está lançada. O povo aguarda a antítese. A questão que surge é: qual será a síntese?
*Marco Aurélio Guilherme Flores é advogado e professor de Direito Constitucional e outras matérias
