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Quando o palco esvazia: o tabu da saúde mental e acessibilidade nos games

Painel com especialistas na Headscon Acre 2025 discutiu burnout, famílias e jogos inclusivos

Um erro na divulgação quase comprometeu o fluxo da programação, mas acabou ajudando a revelar outro tipo de sintoma: a dificuldade coletiva de encarar temas difíceis. Prevista inicialmente para o Salão de Festas, a roda de conversa “Jogando com Todos: Saúde e Acessibilidade em Foco” foi transferida para o palco principal da Headscon Acre 2025 e teve início às 16h50 da terça-feira (18).

O painel teve mediação de Marcelo Minutti, curador geral da Headscon, e contou com o desenvolvedor Felipe Lobo (estúdio Flameseed Productions), Felipe Negrão (coordenador de operações da AbleGamers Brasil) e do psiquiatra Jimy Ramos. Minutos antes, o espaço estava cheio, com público atento às coreografias do animado Palco Livre K-Pop. Quando as cadeiras começaram a esvaziar na transição para o debate, Lobo observou: “É normal dar uma esvaziada quando o assunto é sério”.

Falar sobre saúde mental e acessibilidade nos games ainda assusta, mas é justamente aí que a conversa precisa acontecer.

Game faz bem pra cabeça?

Para começar, Minutti organizou o terreno: há pelo menos dois grupos a serem considerados quando se fala de saúde mental e acessibilidade nos games: quem trabalha na indústria e quem consome jogos.

Convidado a definir o conceito de saúde mental, o psiquiatra Jimy Ramos lembrou que não se trata apenas da ausência de doença, mas da “conquista diária”. Tal equilíbrio envolve rotina de sono, alimentação adequada, atividade física, relações saudáveis e, quando necessário, psicoterapia e tratamento medicamentoso.

Ele trouxe ainda uma questão que desperta curiosidade e controvérsia: o uso de Cannabis medicinal (CBD) em tratamentos ligados a estresse, insônia, ansiedade e burnout, tanto para jogadores quanto para desenvolvedores. Conforme explicou, o CBD é “uma alternativa mais suave, com potencial de ajudar na regulação do sono, no manejo do estresse e na qualidade de vida”, especialmente em contextos de alta demanda cognitiva, como a produção e o consumo intensivo de jogos.

Quando a conversa passou para o lado profissional, Lobo descreveu o ambiente dos estúdios de desenvolvimento como “uma loucura organizada”, em que produtores, artistas e programadores se veem pressionados por prazos e a comparação constante com o que se faz em outros países.

Minutti e Dr. Jimy reforçaram um ponto importante: burnout não é rótulo genérico para cansaço, mas um fenômeno ligado ao contexto de trabalho, provocado por excesso de demanda, cultura de alta performance, falta de pausas e ausência de suporte institucional. O psiquiatra destacou que não basta afastar o profissional para “descansar” se, ao retornar, ele encontrar o mesmo ambiente tóxico.

Ele defendeu políticas organizacionais que incluam pausas reais, incentivo à terapia, flexibilização de horários, check-ups periódicos e abertura para falar de emoções dentro das equipes.

Acessibilidade é um termo amplo

Membro-fundador da AbleGamers Brasil, Felipe Negrão trouxe a perspectiva da acessibilidade como ferramenta concreta de inclusão.

Ele explicou a diferença entre “dificuldade” e “barreira”: a primeira faz parte do desafio do jogo; a segunda é algo que impede alguém de jogar, seja por falta de opções de controle, de configurações visuais, de alternativas de navegação ou de suporte às deficiências motoras, cognitivas ou sensoriais.

A missão da AbleGamers é tornar os games acessíveis a pessoas com deficiência. Isso significa, na prática, adaptar controles, orientar famílias, oferecer consultoria a estúdios e contribuir para combater o isolamento social por meio da experiência lúdica. Além do trabalho direto com jogadores, a organização também atua na formação de desenvolvedores por meio do framework APX – Accessible Player Experience, um conjunto de padrões de design que ajuda a tornar games mais acessíveis desde a concepção.

Mesmo assim, Negrão trouxe um dado que mostra o tamanho do desafio: apenas 28% dos estúdios do mundo implementam recursos de acessibilidade em seus jogos. Ele afirmou que há um movimento global, ainda incipiente, em direção à criação de selos e certificações para produtos acessíveis, além de discussões sobre como certificar estúdios que cuidam tanto da acessibilidade quanto da saúde mental de suas equipes.

Felipe Lobo complementou dizendo que muitos editais públicos passaram a exigir acessibilidade em projetos de jogos, mas nem sempre sabem como avaliar essa entrega e têm recorrido justamente a organizações como a AbleGamers e à própria comunidade para construir critérios.

Ao falar de equipes, Lobo destacou o papel de pessoas neurodivergentes na indústria de games – profissionais com TDAH, TEA ou outros perfis que, segundo ele, costumam trazer ordem, foco e sinceridade para times criativos, desde que tenham um ambiente seguro.

“Quando se dá um ambiente seguro, essa turma performa. É impressionante”, ele diz. “Muda ponteiro, entrega sistema de design em uma ou duas semanas, sem precisar de pressão, porque se sente protegida”.

Equilibrando rotina, limite e acolhimento

Ao final, a conversa se voltou para dentro de casa. Minutti perguntou aos debatedores como as famílias podem agir quando percebem que o jogo começa a limitar a vida social, afetar o sono ou desencadear crises de ansiedade em crianças e jovens.

Dr. Jimy lembrou que o game, por si só, não é vilão. Ao contrário, pode ser espaço de desenvolvimento cognitivo, treino de habilidades, inclusão social e ginástica mental, inclusive para idosos. O problema aparece quando há excessos sem rotina e transtornos de base não tratados, como TDAH ou ansiedade social, que aumentam a tendência ao uso desregulado.

Ele reforçou que cabe à família estabelecer horários, incentivar atividade física, cuidar da higiene do sono e observar sinais de adoecimento, buscando ajuda profissional quando necessário.

Felipe Negrão trouxe um contraponto otimista: os jogos também servem como ferramenta de reconexão familiar. Ele relatou atendimentos em que a adaptação de um controle permitiu que uma criança com deficiência passasse a jogar com o pai ou, em outros casos, que pais com limitações físicas voltassem a dividir o videogame com os filhos.

Em vários desses exemplos, o controle adaptado não é apenas um dispositivo: é o objeto que recoloca pessoas em diálogo, sentadas lado a lado, partilhando o mesmo tempo e o mesmo universo simbólico.

Fotos: Netto Valdeir, da Agência Collab

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