“Essa água aqui é vida. Se isso aqui acabar, Deus me livre, onde é que nós vamos ficar?”, esse é o desabafo de Antônio Viana, conhecido como Antônio Catraieiro, de 58 anos, enquanto atravessa diariamente o Rio Acre, em Rio Branco, bem no coração da Amazônia, no extremo sudoeste do Brasil, onde o estado do Acre enfrenta, pelo terceiro ano consecutivo, uma das estiagens mais severas de sua história.
Em 2025, a seca chegou mais cedo, intensificada pelas mudanças climáticas e agravada pelo desmatamento, pelo mau uso do solo e pela degradação ambiental. O resultado é visível: rios encalhados, lavouras comprometidas, comunidades ribeirinhas isoladas e a população urbana sufocada pela fumaça e pelo calor extremo.
A rotina de indígenas, agricultores, pescadores e moradores das cidades se transformou em uma luta diária pela sobrevivência. A combinação de chuvas abaixo da média, ondas de calor e baixa umidade colocou o estado em situação de emergência, reconhecida oficialmente pelo governo federal em 21 municípios acreanos, sendo eles: Acrelândia, Assis Brasil, Brasileia, Bujari, Capixaba, Cruzeiro do Sul, Epitaciolândia, Feijó, Jordão, Mâncio Lima, Manoel Urbano, Marechal Thaumaturgo, Plácido de Castro, Porto Acre, Porto Walter, Rodrigues Alves, Santa Rosa do Purus, Sena Madureira, Senador Guiomard, Tarauacá e Xapuri. Apenas a capital Rio Branco decretou a medida de forma individual, onde o nível do Rio Acre chegou a marcar 1,49 metros, um dos níveis mais baixos já registrados.
Em meio a essa crise, Antônio Viana insiste em manter viva uma tradição que faz parte da história acreana e de sua família.
“É um trabalho que eu gosto. É uma profissão boa. Isso aqui é de família. Meu tio era catraieiro. Então, a minha geração vem de família, como catraieiro. É uma profissão que eu abraço com o maior carinho. Eu gosto do meu trabalho”, destacou o catraieiro. “Só que a catraia não tem valor. As pessoas se enganam com os catraieiros. E isso é que faz parte da história do Acre. Foi o primeiro transporte que surgiu no estado do Acre. Só que não dão valor”, completou.
Há 25 anos ele atravessa passageiros no Rio Acre, no porto do histórico Mercado, localizado no centro da cidade, que hoje se encontra cada vez mais raso e assoreado.
“O leito do rio está ficando todo aterrado. O pequeno produtor chega com os produtos dele é uma novela para ele encostar com tanto pau e pedra e cada dia que se passa tá ficando pior o porto do mercado”, contou seu Antônio.
Dos oito catraieiros que antes atuavam nos diversos portos de Rio Branco, sendo eles: o do Mercado Central, Quinze, Taquari, Cidade Nova e no famoso “Rabo da Besta”, restam apenas dois, o do Mercado e do Taquari. Viana é o único no porto do Mercado. “Antigamente fazíamos até 200 pessoas por dia. Hoje, eu passo 60 pessoas, dependendo do dia, devido a essa crise que estamos passando”, relatou.
Apesar das dificuldades, ele diz que segue firme por conta dos moradores que ainda dependem do serviço para ir ao mercado ou chegar rapidamente à rodoviária do bairro da 6 de Agosto. “Às vezes eu penso em parar, mas meus passageiros pedem para eu continuar. É bom para nós”, contou.
O drama não passa despercebido pelo poder público. No último dia 11 de agosto, uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac) discutiu os impactos da crise climática no Rio Acre.
“Todos nós sabemos que decreto não produz água, não preserva rios, não preserva nascentes. Será até quando vamos viver essa realidade?”, questionou o professor Claudemir Mesquita, geógrafo da Universidade Federal do Acre, ao criticar a ocupação desordenada das margens e a falta de gestão eficiente das bacias hidrográficas.
O deputado estadual Eduardo Ribeiro, autor do requerimento nº 51/2025 da audiência, defendeu mais investimentos em educação ambiental e na implantação de estações de tratamento de esgoto. “Que possamos trabalhar com urgência para aumentar o investimento em educação ambiental e avançar na implantação das estações de tratamento de esgoto”, defendeu o deputado.
Os números reforçam a gravidade da situação. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Rio Branco, apenas em 2025 já foram registrados 2.496 casos de Doenças Diarreicas Agudas e mais de 30 mil atendimentos por doenças respiratórias, agravadas pela poeira, baixa umidade e fumaça das queimadas.
Na zona rural, caminhões-pipa transportam milhões de litros de água para abastecer mais de 40 comunidades que não possuem acesso à rede regular de abastecimento, atendendo até 30 mil pessoas. “As secas e estiagens matam menos que as inundações, mas o prejuízo econômico e de saúde é muito maior, porque atinge 100% da população”, explicou o tenente-coronel Cláudio Falcão, da Defesa Civil Municipal.
A estiagem compromete ainda a agricultura, a piscicultura e a bacia leiteira, elevando os preços dos alimentos na cidade, que, de acordo com o tenente-coronel, há mais de 90 milhões de prejuízo na zona rural em decorrência da seca, com perda de frutas e hortaliças.
Para famílias como a do aposentado Manoel de Oliveira Andrade, morador do bairro Raimundo Melo, parte alta da cidade, a rotina inclui economizar água já que não cai todos os dias. “Somos em oito pessoas, e nesse período a água fica escassa, então economizamos. Para beber e cozinhar, compramos água mineral. Hoje ter água em casa é um privilégio. No meu bairro, tem vizinhos que ficam até quatro dias sem abastecimento”, contou.
No âmbito federal, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) reconheceu a grave escassez hídrica nos rios Juruá, Purus, Acre e Iaco, ampliando as regras para uso e fiscalização até outubro. Dados recentes do Monitor de Secas mostram que, entre junho e julho, 100% do Acre foi afetado pela estiagem, o maior percentual da região Norte.
“A ANA irá acompanhar a situação hidrometeorológica da bacia visando identificar impactos sobre os usos da água e propor eventuais medidas de prevenção e mitigação por meio das reuniões de avaliação das Condições Hidrometeorológicas da Região Norte, com a participação dos órgãos gestores dos recursos hídricos dos estados abrangidos”, enfatiza o documento.
Para o diretor da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema), Erisson Cameli Santiago, a preocupação vai além do Rio Acre. “Diversos igarapés foram destruídos e hoje não existem mais. A água não chega como antes. A nossa parte nós estamos fazendo, mas não sei se conseguiremos salvar todos”, afirmou.
O prefeito de Rio Branco, Tião Bocalom, também decretou situação de emergência por conta da seca do manancial. A decisão foi tomada com base nos dados hidrológicos da Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (Comdec), que indicam que o Rio Acre está abaixo da cota de alerta desde 18 de junho, tendo atingido o nível máximo de alerta em 19 de junho.
Em contrapartida, em novembro de 2024, o Rio Acre atingiu 1,25 metro, igualando-se a cota registrada em 2022. Durante quase cem dias, permaneceu abaixo dos 2 metros, comprometendo o abastecimento urbano e obrigando a Prefeitura a recorrer a caminhões-pipa e caixas d’água comunitárias para atender cerca de 35 mil pessoas.
Fumaça sufoca Rio Branco e acende alerta para crise ambiental
Por semanas, no segundo semestre de 2024, Rio Branco permaneceu encoberta por uma espessa cortina de fumaça. Em setembro, a qualidade do ar na capital acreana atingiu 549 µg/m³, nível considerado “perigoso” — o mais alto da escala da plataforma internacional IQAir, que monitora a poluição atmosférica. Nos sensores do sistema Purple Air, o índice foi de 399,7 µg/m³ de material particulado, quando valores acima de 250 µg/m³ já configuram emergência em saúde pública.
A situação não se restringiu à capital, Sena Madureira (138,25 µg/m³), Porto Acre (123,04 µg/m³), Manoel Urbano (107,86 µg/m³), Santa Rosa do Purus (105,05 µg/m³) e Cruzeiro do Sul (102,97 µg/m³) também registraram ar insalubre. De acordo com o Centro Integrado de Geoprocessamento e Monitoramento Ambiental (Cigma), vinculado à Sema, o acúmulo de fumaça resultou do grande número de focos de calor na Amazônia, sobretudo no sul do Amazonas.
A nuvem tóxica obrigou a suspensão das aulas presenciais na rede pública e privada. Mas, mesmo com o ensino remoto, os impactos na saúde foram inevitáveis. O estudante Izaías Souza, 18 anos, contou que, à época, precisou recorrer ao atendimento médico.
“Foi um período complicado. Estudava na época e minha rotina ficou comprometida. Minha saúde também foi afetada. Tive que usar máscara para ir à escola, mas não adiantou muito. Fiquei com falta de ar, cansaço e secreção nasal. O diagnóstico foi intoxicação pela fumaça, e precisei de medicação e nebulização três vezes ao dia”, relatou.
Para a coordenadora do Observatório Socioambiental do Acre, Daniela Dias, o problema vai além da degradação ambiental. “As queimadas são também uma questão de saúde pública. Crianças, idosos e pessoas com doenças respiratórias são os mais atingidos”, afirmou.
Ela defende políticas permanentes e integradas para enfrentar os extremos climáticos. “Não dá mais para separar política ambiental de política de saúde. Trabalhar apenas em cenários de emergência é caro, ineficiente e atrasado. Precisamos de iniciativas planejadas e articuladas”, reforçou.
Em 2024, o Acre recebeu R$ 10,9 milhões do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional para ações de combate às queimadas e mitigação dos efeitos da estiagem. Ainda assim, entre 1º e 23 de agosto daquele ano, o estado registrou 1.151 focos de incêndio, com destaque para os municípios de Feijó (290), Tarauacá (188) e Cruzeiro do Sul (136). Já em 2025, no mesmo período, o número caiu para 179 focos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), sendo Feijó (42), Tarauacá (29) e Rio Branco (24) os mais afetados.
O Corpo de Bombeiros Militar (CBMAC) aponta que, até 23 de agosto deste ano, foram identificados 150 focos de calor, com destaque para Rodrigues Alves (29), Cruzeiro do Sul (46) e Tarauacá (45). O comparativo revela uma redução expressiva em relação a 2024, quando houve 1.997 focos no mesmo mês.
O Ministério Público do Acre (MPAC) também atua no enfrentamento ao desmatamento ilegal. O promotor de Justiça de Meio Ambiente, Alekine Lopes, explicou que os infratores geralmente recebem penas alternativas, como pagamento de multas ou serviços comunitários. Para ele, é preciso alinhar preservação e economia.
“Uma economia saudável e um meio ambiente equilibrado são duas faces da mesma moeda”, afirmou.
Apesar de Rio Branco integrar a Amazônia Ocidental, é a quarta cidade menos arborizada do Brasil. Para reverter esse cenário, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semeia) tem atuado na recuperação das áreas verdes, com o plantio de aproximadamente 6.500 árvores como medida de combate ao desmatamento.
O Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac) coordena suas ações por meio da Casa Civil, realizando reuniões semanais na Sala de Situação com os demais órgãos do Comando e Controle Ambiental. A partir dessas reuniões, o Cigma encaminha alertas de desmatamento e queimadas à Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema), que repassa as informações ao Imac. A Divisão de Controle Ambiental, por sua vez, une esses dados e denúncias para direcionar as operações em campo.
As denúncias sobre crimes ambientais podem ser feitas pelos seguintes canais:
– Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac) – (68) 99256-8047 (Whatsapp);
– Corpo de Bombeiros do Estado do Acre (CBMAC) – 193;
– Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – 0800-618080;
– Polícia Militar do Estado do Acre – 190.
A realidade do Acre tem sido marcada por impactos significativos tanto no meio ambiente quanto na economia local. Segundo Thiago de Almeida, diretor de Pesquisa, Tecnologia e Inovação do Agronegócio da Secretaria de Agricultura do Acre (Seagri), os pequenos agricultores estão entre os mais prejudicados. “Eles ainda lutam para se recuperar das fortes chuvas e agora enfrentam a severidade da seca. Para muitos, isso pode resultar na perda total da produção, o que representa um grande desafio para a sobrevivência e para a segurança alimentar da região”, afirmou.
Para enfrentar a crise, a Secretaria atua em duas frentes: a ajuda humanitária imediata, com resgate e assistência técnica e a mitigação dos efeitos futuros. Um programa de R$ 35 milhões já está em execução e prevê desde a captação de água da chuva até a construção de açudes com geomembranas, além de projetos de armazenamento e conservação hídrica. Em 2024, mais de 300 tanques e açudes foram construídos. Mesmo assim, Thiago reconhece que ainda há muito a ser feito.
“Essas iniciativas fortalecem a resiliência das famílias rurais e promovem uma gestão mais consciente dos recursos hídricos, assegurando que todos tenham acesso à água, mesmo nos períodos mais secos”, destacou o diretor de Pesquisa.
Mas, na prática, os efeitos da seca são sentidos de forma dura pelas comunidades. Raimundo, morador do Seringal Macapá, às margens do Rio Purus, em Manoel Urbano, resume em poucas palavras o que muitos vivem diariamente. “Tá um pouco difícil, mas dá de ir passando. As plantações estão bem, só as criações que não, eu perdi 5 vacas e 4 novilhas. Eu moro perto do rio Purus, pego água para os animais, e fiz um poço artesiano. A água é ruim, mas nós estamos bebendo de lá”.
Enquanto autoridades discutem soluções e especialistas alertam sobre a urgência de políticas estruturais, a vida segue no compasso da seca. O Rio Acre, antes abundante em peixes e vital para o transporte, mostra sinais de exaustão.
“Cada dia que passa, se os caras não olharem para esse rio, isso aqui vai acabar. Pelo jeito que eu estou vendo, o negócio não está brincando, não”, resume o catraieiro Antônio Viana.