quarta-feira, 25 junho 2025

Dois indígenas são aprovados no curso de medicina da Ufac: ‘Grande honra’

Redação Folha do Acre

Angélica Nunes da Silva Manchineri, de 24 anos, dos povos Manchineri e Huni Kuin, e Wesley Felipe Costa de Souza Nawa, de 25, da etnia Nawa, são os primeiros indígenas do Acre a passarem no curso de medicina da Universidade Federal do Acre (Ufac) em mais de 20 anos. O curso foi criado no ano de 2002 e desde então, nenhum indígena havia sido aprovado nesta graduação.

Os dois foram aprovados em um vestibular voltado especificamente para indígenas. Em março, a Ufac lançou um edital específico com vagas para cursos de graduação.

“Ser a primeira indígena a entrar no curso de medicina é uma grande honra e uma responsabilidade imensa porque foram 35 turmas, com a minha agora, para que um indígena pudesse ingressar num curso tão elitizado como é o de medicina”, disse Angélica, que mora em Rio Branco e iniciou as aulas no início de junho, durante o primeiro semestre de 2025.

Angélica já tinha uma rotina de estudos antes de ser aprovada. Com a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020, ela havia conseguido uma bolsa com 100% de desconto no curso de engenharia civil em uma faculdade privada, cursou até o 6º período, mas não concluiu as aulas porque a instituição fechou em 2023.

Então, a jovem fez o Enem novamente em 2023 e conseguiu passar para o curso de engenharia elétrica. Como a meta era continuar os estudos em engenharia civil, ela prestou a prova novamente e passou no ano seguinte e conseguiu uma vaga no curso desejado.

Foi durante o processo de documentação para o ingresso no curso de engenharia civil que saiu o edital do vestibular específico para indígenas da Ufac e Angélica viu a oportunidade de cursar medicina numa universidade pública.

“O desejo era continuar de onde eu parei ou tentar aproveitar o que desse das matérias que eu havia cursado. Mas, conforme comecei o curso de elétrica, não senti mais a vontade e o interesse que tinha antes e cogitei ir para outra área. Foi quando o vestibular saiu e houve a oportunidade”, disse a acadêmica.

Ela conta que a medicina até então não havia sido opção, pois seria um curso muito disputado. Porém, com a abertura do vestibular voltado ao público indígena, ela viu uma chance de mudar de área e estudar num curso tão concorrido.

“Nunca tinham feito um vestibular indígena, então, estudei durante um mês, que era o tempo que eu tinha. Estudei do dia que saiu o edital até a data da prova. Todos os dias ia para a biblioteca da Ufac. Comecei primeiro com resumos e leitura, mas percebi que tinha um rendimento melhor respondendo questões sobre cada assunto”, lembrou.

Angélica durante o tradicional trote aplicado aos calouros — Foto: Arquivo pessoal

Angélica falou ainda da surpresa em ser aprovada na única vaga para o curso de medicina aberta para o primeiro semestre de 2025 na Ufac na capital.

“Fiquei muito feliz e surpresa. Eu havia estudado e me preparado, porém, sempre tinha aquele sentimento de ‘vão ter pessoas mais preparadas e mais inteligentes'”, completou.

Sonho de infância

Wesley, que mora em Mâncio Lima, interior do Acre, também fez a prova e passou para a vaga da turma que iniciará em outubro deste ano, no segundo semestre. Ele conta que viu no vestibular para indígenas a chance de realizar um sonho de infância.

“Eu sempre tive o sonho de cursar medicina, sempre gostei de cuidar dos outros, sempre me vi do outro lado, o lado de ajudar quem precisa. Esse sonho nunca foi oculto, sempre mencionei a todos os familiares, amigos, parentes. É tanto que quem me indicou foi meu primo, Icaro Ninawá, que já sabia da minha vontade”, explicou.

Assim como Angélica, Wesley já tinha uma rotina de estudos. Em 2017, o jovem conseguiu passar para o curso de letras espanhol na Ufac, no campus de Cruzeiro do Sul, mas, devido à distância, acabou desistindo dos estudos após um ano.

Entre 2019 e este ano, Wesley relata que continuou estudando na expectativa de, em algum momento, passar em medicina.

“Eu sempre estava atento, tanto as videoaulas, quanto às atualidades, assistia muito o jornal para saber das atualidades e tudo mais. Para medicina foi a primeira vez que me inscrevi e já vinha estudando há alguns anos para tentar uma boa nota no Enem e de alguma forma fazer medicina pela Ufac”, completou.

Com o edital aberto, o foco foi voltado para o vestibular e o indígena estudou, pelo menos, uma hora por dia. Ele disse que sabia que a concorrência seria grande, mesmo sendo um vestibular específico para o público indígena.

“Eu sabia que não seria fácil. A gente sabe que muitos parentes têm esse sonho de ingressar numa faculdade federal e não têm como pagar uma particular. Essa é a realidade do nosso povo, tentar vestibulares para passar para universidades federais”, pontuou.

Com a aprovação do curso sonhado, Wesley precisa se mudar do interior para a capital para estudar. Para isso, ele contará com a ajuda de uma tia, que tem uma residência próximo da universidade, para terminar o curso.

“A gente conversou e ela disponibilizou essa casa. Ficarei pagando apenas água e luz, que pretendo pagar com o auxilio de bolsa estudantil. Se não der certo, vamos tentar dividir um aluguel com alguns dos parentes que já estudam na capital”, disse ele ao lembrar que os familiares e parentes da comunidade indígena também se prontificaram a ajudar com a realização do sonho.

Wesley foi aprovado para a turma do segundo semestre do curso de medicina da Ufac — Foto: Arquivo pessoal

Futuro

Para o futuro, os dois jovens contam que pretendem atuar em comunidades indígenas.

“Estou muito feliz e honrada em representar a persistência do meu povo. Estou inclinada para a área de neurologia e atendimento às comunidades indígenas ou, também, cogito ser docente na área de medicina e de alguma forma contribuir para o ensino de futuros médicos indígenas que virão”, contou Angélica.

Wesley diz gostar das áreas da pediatria e da obstetrícia. Mas, vai descobrir qual especialização devem investir no decorrer do curso. “Quero algo para a melhoria dos parentes, porque no nosso território, as pessoas que atuam lá são brancos, não são indígenas, e aí a gente quer reforçar que o indígena também tem capacidade. Eu quero atuar dentro da área indígena, seja lá, na área indígena que eu moro ou ser na área indígena de outros parentes,” disse Wesley.

Vestibular para indígenas

As vagas foram abertas para 36 cursos em Rio Branco e outros 10 em Cruzeiro do Sul. A maioria das graduações tiveram apenas uma vaga para concorrência entre este público, e para aulas no 1º semestre deste ano.

Apenas no caso dos cursos de engenharia florestal (bacharelado) e medicina foram disponibilizadas vagas também para o segundo semestre de 2025 no campus Rio Branco.

“A entrada dos primeiros estudantes indígenas no curso de Medicina da Ufac representa um marco histórico para a universidade e para o nosso compromisso com a inclusão e a equidade. Esse resultado é fruto de um edital construído com diálogo e responsabilidade social, reafirmando o papel da Ufac na valorização da diversidade e na formação de profissionais que compreendam, respeitem e atendam às realidades dos povos originários”, disse a reitora da Ufac, Guida Aquino.

G1/AC

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