Dados atualizados do DataSebrae, referentes ao quarto trimestre de 2024, mostram que as mulheres representam 42% (10,4 milhões) dos empregadores ou trabalhadoras por conta própria no Brasil, um recorde inédito nos últimos 10 anos. No Acre, 21.350 mulheres estão à frente de negócios, o que representa 25,1% do total de empreendedores do estado. Moda, beleza, alimentação e estética concentram cerca de 70% dessas empreendedoras, segundo a Rede Mulher Empreendedora.
É nesse cenário que se destaca a história de Maria José Mary, natural de Rio Branco e criada na Vila Corcovado, em Tarauacá, interior do Acre. Com um olhar determinado e sonhos grandes, Maria cresceu na roça, mas sempre com o desejo de empreender.
“Eu queria ter uma empresa, eu queria ter um negócio próprio. Eu sempre falava à minha família que um dia que Deus me desse a oportunidade, eu vinha para a cidade, para Rio Branco, para tentar a minha própria sorte”, relembra Mary.
Aos 14 anos, Maria veio sozinha para Rio Branco e começou sua trajetória como empregada doméstica. Chegou a passar um ano em São Paulo trabalhando na mesma função, onde ouvia dos patrões que ainda conheceria o mundo. Mas o mundo que Maria queria conhecer era outro, o da autonomia financeira, o do empreendedorismo, o de uma empresa com o seu nome.
De volta ao Acre, em 2008, deixou um currículo no Supermercado Araújo. Foi contratada como auxiliar de limpeza e, com muito esforço, trilhou um caminho admirável. Passou pela cozinha, pela padaria e chegou a se tornar a única sushiman da loja na época.
“Eu amava trabalhar com aqueles sushis. Eu pensava: ‘Meu Deus, eu acho que é isso que eu vou trabalhar’. Só que dentro de mim me falava que não era, e dizia ‘Deus, me mostra qual é a área que eu vou trabalhar, que eu vou me identificar. Me mostra de alguma forma’”, recorda Maria.
A resposta veio de forma inesperada, após uma experiência dolorosa em um salão de beleza que Maria frequentava há algum tempo. Ela costumava indicar o local para amigas, confiando na qualidade do serviço. No entanto, ao pedir um simples brinde, foi humilhada publicamente.
“Maria, você não tem vergonha na sua cara? Eu já faço seu cabelo quase de graça e você tem coragem de me pedir brinde?”. A humilhação, dita na frente de outras pessoas, a fez sair chorando. “O meu mundo desabou na hora, eu fiquei com muita vergonha e eu saí desse lugar chorando”, relata.
Além da dor da humilhação, Maria carregava outra preocupação, os cabelos, difíceis de cuidar, precisavam estar sempre arrumados por exigência do supermercado onde trabalha. “Ficava pensando: ‘Meu Deus, e agora? O que é que eu vou fazer com o meu cabelo? Onde vou encontrar outra pessoa para cuidar dele de novo?”
Naquele mesmo dia, ao atravessar a rua ainda com lágrimas nos olhos, Maria bateu à porta de um depósito da Verde Brasil, onde pediu um tratamento capilar parcelado. Foi atendida por Sônia Brito, técnica da marca, que lhe ofereceu mais do que um produto: ofereceu oportunidade.
“Ela me ensinou a aplicar a selagem e disse: ‘Eu não vou lhe vender a selagem, vou lhe ensinar. Sou técnica, vou lhe ensinar e você vai aprender e depois você vai fazer um curso e quem sabe, um dia, você não vai estar ganhando dinheiro com esses cabelos?’. Era Deus falando na boca dessa mulher, eu vi”, conta a profissional.
Ali nascia a futura cabeleireira, empresária e formadora de talentos. Vieram os cursos, realizados por meio do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) e do Instituto Embelleze, com formações em São Paulo e Porto Velho, sempre com o apoio do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Em 2013, Maria tomou uma decisão corajosa: deixou o emprego fixo para abrir o próprio negócio, mesmo sem a estrutura ideal, sem lavatório ou cadeira adequada.
“Peguei toda a indenização que eu tinha na época, meu esposo também me ajudou, e nós montamos a minha empresa. Lembro que, na época, eu não tinha lavatório, não tinha cadeira adequada, a gente usava as cadeiras de plástico. Tinha até umas madeiras na minha casa, as clientes sentavam e usavam como banco”, relembra.
Hoje, Maria José Mary comanda um salão com 11 profissionais, das quais sete de suas ex-colaboradoras já abriram seus próprios espaços. Mais do que cuidar de cabelos, ela transforma vidas. “Hoje, nenhuma das minhas cabeleireiras eu pego já sabendo. Eu gosto de treinar, gosto de pegar as pessoas do zero, que não sabem nem pegar no secador e nem na prancha. Gosto de pegar na mão das pessoas e ensinar”, explica Maria.
Entre tantas histórias, uma das mais marcantes é a de Mariana, indicada pela ONG Coração Solidário, que atua no bairro Apolônio Sales, parte alta da capital Rio Branco, a jovem estava prestes a mergulhar num mundo de vícios e da criminalidade. Maria topou o desafio de ensinar, oferecendo R$ 15 por dia para incentivá-la a aprender. Hoje, Mariana é uma das profissionais mais requisitadas do salão.
“Ela é uma das meninas que mais me motivou a querer seguir com esse meu projeto. A família dela quase toda já está aqui. As duas irmãs dela, a mãe dela, que trabalha com a gente fazendo faxina, lavando as toalhas do salão. Essas meninas me motivam cada vez mais a querer seguir com esse projeto”, conta Maria José.
Com o sonho de abrir uma escola de beleza, Maria lembra da professora que a inspirou. “Eu tive uma professora chamada Rosy Medello. Essa professora me marcou muito porque quando eu não sabia de nada, ela pegava na minha mão com todo amor, com todo carinho e eu olhava para e dizia: ‘Um dia eu quero fazer que nem essa mulher, eu quero poder ensinar as pessoas com esse amor e com essa dedicação que essa mulher tá fazendo comigo’. Foi através daquele gesto que surgiu esse sentimento em mim”.
Maria também revela um voto que fez com Deus antes de abrir a empresa, baseado na história bíblica de Jacó. “Eu falei para o senhor que se Ele me ajudasse, me desse o dom, o amor, colaboradores, fornecedores com produtos e clientes, eu ia trabalhar dentro do meu bairro, com valores bem abaixo do mercado. E aquele cliente que Deus mandasse, que Ele colocasse no meu coração que eu não cobrasse, eu não iria cobrar. E a pessoa que Ele me mandasse para eu abençoar, eu iria abençar”.
Sem ainda ter certificação oficial, o salão funciona como uma escola informal para quem deseja aprender. “Aqui, nos cursos que nós oferecemos, eu ainda não dou certificado porque não terminei a escola, mas quem chega aqui com vontade, eu ensino. E se eu vejo que tem dom, dou todo o conhecimento e, se possível, ainda ofereço uma vaga de emprego”, diz Mary.
Os frutos já são visíveis. Mariana, Rosário, Adriélia, Franciele, Gabrielle, Darce Zete e Paula Barros são exemplos de ex-aprendizes que hoje atuam com destaque ou têm seus próprios salões. “A Gabrielle, por exemplo, chegou aqui com medo de atender clientes, mas tinha um dom. Hoje tem o próprio estúdio e é especialista em maquiagem e sobrancelha”, destaca Maria.
Outro caso inspirador é o de Ed, jovem que pediu a Maria a chance de aprender. “Ninguém queria dar oportunidade para ele. Ele chegou para mim e falou: ‘Maria, tu pode me ensinar?Tu pode me dar uma oportunidade? Eu tenho um sonho de aprender a mexer com cabelo, mas eu não sei e ninguém quer me ensinar’. Eu falei, claro meu filho, vem, eu lhe ensino”.
Após seis meses no salão Mary Fashion, Ed fez curso no Senac e, após ser notado durante um evento em São Paulo, foi convidado para atuar em um salão de alto padrão. “O Ed nasceu para brilhar, para ser estrela. O meu orgulho é que fui eu que dei a primeira base para ele. Em 2020 ninguém via ele. Mas hoje ele é visto, recebe convites. Isso me orgulha demais”.
O grande objetivo agora é transformar o salão em uma escola formal. Maria pretende separar dois dias da semana exclusivamente para aulas e treinamentos, com direito a materiais, produtos e certificação.
“Eu quero oferecer tudo o que uma escola oferece: certificado, estrutura e todos os direitos que um aluno tem. Hoje, infelizmente, não consigo pagar as meninas que me ajudam com os cursos. Preciso de ajuda para isso, porque não quero que ninguém trabalhe aqui como voluntário”, disse ela.
O projeto também conta com o apoio do Sebrae, que foi fundamental na formação de Maria como empreendedora. Em parceria com a Vild São Paulo, o Sebrae custeou 80% das despesas para que ela participasse de uma das maiores feiras do país.
“O Sebrae foi uma chave muito fundamental na minha carreira. Eles abriram um novo horizonte, novos conhecimentos. Tivemos acesso a novas tendências, coisa que a gente não via aqui no Acre. Então, para mim foi muito importante”, afirma Mary.
Neste ano, Maria optou por não viajar para focar na ampliação do espaço, mas garante que em 2026 pretende voltar à feira.
Hoje, o Mary Fashion, localizado no bairro Apolônio Sales, é muito mais do que um salão de beleza. Tornou-se um símbolo de acolhimento, superação e oportunidade para dezenas de jovens que encontraram ali não apenas uma profissão, mas uma nova chance de vida. Com o coração voltado para o próximo e os olhos firmes no futuro, Maria José Mary segue transformando histórias por meio da beleza e da educação.
“O que eu sonho para o futuro é ver essa escola crescendo, cheia de alunas, e muitos salões espalhados por Rio Branco e por todo o Brasil, todos saindo daqui, da Mary Fashion”, projeta Maria.