quinta-feira, 12 junho 2025

“Como se fosse um bandido”: Ogan denuncia intolerância religiosa após matéria sobre crescimento das religiões de matriz africana no Acre

Por Alessandro Silva, da Folha do Acre

Um desabafo emocionado nas redes sociais do Ogan Matheus Alexandre, feito na noite da última segunda-feira (9), ganhou repercussão após a publicação de uma matéria jornalística em um site local, que destacava o crescimento das religiões de matriz africana no Acre com base nos dados do Censo Demográfico 2022. A publicação, que deveria celebrar a diversidade religiosa, foi invadida por centenas de comentários carregados de ódio, desinformação e intolerância.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Acre registrou um crescimento expressivo de adeptos do Candomblé e da Umbanda, refletindo a resistência e o fortalecimento dessas tradições no estado. Mas os comentários na matéria revelam outra realidade: o avanço da intolerância religiosa, em especial contra religiões de matriz africana.

Entre as mensagens, estavam frases como:

“Pro Diabo é mais fácil trabalhar, mas condenação ele não salva (sic)”

“Se macumba funcionasse, preto andava de iate.”

 

Diante disso, Matheus Alexandre, que exerce a função de Ogan — responsável pelo ritmo e música nos rituais — decidiu expor publicamente os ataques. Em entrevista exclusiva à Folha do Acre, ele compartilhou sua indignação e dor diante da violência simbólica e espiritual sofrida por ele e por sua comunidade.

“É uma situação escancarada de impunidade. Quando é com o povo de santo, parece que tudo é permitido. Podem xingar, cuspir, queimar terreiros, bater, matar… e nada acontece. É como se a gente fosse bandido. Gente, não é isso. Nós não somos estranhos. Nossa religião tem ligação direta com a história do Brasil, com a resistência do povo africano e originário”, declarou o Ogan.

Crescimento da fé e do preconceito

De acordo com o relatório de 2023 do Disque 100, o canal do governo federal que recebe denúncias de violações de direitos humanos, o Brasil registrou 1.665 denúncias de intolerância religiosa em 2022 — um aumento de mais de 45% em comparação ao ano anterior. A maioria dos casos envolve religiões de matriz africana.

No Acre, apesar da ausência de dados detalhados por estado no relatório, líderes religiosos afirmam que os casos de preconceito são constantes, principalmente nas redes sociais. Para Matheus, a capital acreana é um exemplo claro desse cenário:

“Aqui em Rio Branco, quase 100% da sociedade é intolerante com as religiões de matriz africana. A gente não pode sair com nossas roupas tradicionais que já somos olhados torto, como se fôssemos criminosos. Isso dói.”

O papel da justiça e da educação

Para o Ogan, o caminho para combater a intolerância passa pela aplicação rigorosa da lei e por políticas de educação religiosa e antirracista:

“Antes de tudo, precisamos que a justiça funcione. Intolerância religiosa é crime. As pessoas precisam entender que discurso de ódio tem punição. Não adianta criar leis se elas não são aplicadas. A impunidade alimenta o preconceito.”

Ele também destacou a importância da educação laica e inclusiva, criticando iniciativas recentes que propõem a obrigatoriedade da Bíblia nas escolas públicas.

“O Estado é laico. Ensinar apenas uma religião nas escolas é um desrespeito com todas as outras. Precisamos de uma educação que apresente todas as crenças, para que as futuras gerações respeitem as diferenças.”

Resistência, fé e acolhimento

Questionado sobre o que gostaria que as pessoas entendessem sobre sua fé, Matheus falou com emoção sobre as raízes históricas da religião que professa:

“Minha fé vem do sofrimento de pessoas negras arrancadas de suas casas, que resistiram e sobreviveram. A Umbanda e o Candomblé cuidam de pessoas, acolhem, tratam o psicológico, tratam a saúde espiritual. A folha que cai e vira banho pode salvar alguém que pensava em suicídio. Nossa religião é cura, é acolhimento, é vida.”

Desafios e esperança

Por fim, o Ogan destacou que o maior desafio enfrentado pelas religiões de matriz africana continua sendo a falta de respeito:

“É como se a gente tivesse escrito na testa: ‘me xingue, me bata, me humilhe’. O maior paredão que temos pra escalar é o respeito que nos falta. Mas seguimos em pé, com dignidade, resistência e fé.”

O que diz a lei?

O artigo 20 da Lei 7.716/89 trata dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de religião. Ele prevê reclusão de um a três anos e multa para quem praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito de religião.

Além disso, o Código Penal, em seu artigo 208, considera crime o vilipêndio público de ato ou objeto de culto religioso, com pena de um mês a um ano de detenção ou multa.

Disque 100

Casos de intolerância religiosa podem ser denunciados gratuitamente por meio do Disque 100, canal do Ministério dos Direitos Humanos.

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