26 junho 2024

Pequenos criadores de gado vivem a pior crise na pecuária do Acre

Orlando Sabino

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O pequeno produtor de carne no Acre vive um ambiente de crise sem precedentes na história da pecuária regional. A situação é grave e impacta diretamente 14.146 pecuaristas em todo estado. Esse é o número de propriedades que possuem até 100 cabeças de gado no Acre, segundo o Instituto de Defesa Animal e Florestal (Idaf).

O ciclo pecuário vive um momento de baixa no preço da arroba. Em algumas regiões do país, essa informação é assimilada com preocupação. No Acre, beira o desespero. Descapitalizado e endividado, o pequeno pecuarista não tem encontrado alternativas e a cadeia produtiva mais consolidada da economia acreana pode construir um cenário de caos se não for construída uma reação do tamanho e com a rapidez que o problema exige.

Um termômetro dessa situação está no Banco da Amazônia. Só nesta instituição financeira pública, 1.250 produtores, classificados em “agricultura familiar”, acessaram alguma operação de crédito com foco específico para pecuária, no período entre 2021 e 2023. Somadas, as dívidas desses pequenos pecuaristas alcançam a cifra de R$ 35 milhões.

“É um recurso que o produtor aplica na infraestrutura da propriedade, cercamento, pastagem”, pontua o superintendente do Banco da Amazônia no Acre, Edson Souza. É justamente esse tipo de investimento que deixou de ser feito em 2023 com o preço da arroba em baixa. Mas sobre este aspecto do cenário, o recado parece ser muito claro.

“É um problema de mercado”, esquiva-se o superintendente. “O banco não vai publicar uma circular formalizando uma renegociação automática”.

Souza considera mais realista a possibilidade de que o Banco da Amazônia avalie cada problema específico. “Estamos tratando cada problema ponto a ponto e isso é possível hoje porque o banco possui mecanismos que possibilitam essa renegociação de forma ágil, rápida, dentro dos parâmetros do Manual de Crédito Rural”.

Outra ferramenta que o superintendente destaca como uma alternativa são os custeios de renegociação. É uma espécie de recurso para desesperados: o banco viabiliza mais recursos com juros e condições semelhantes ao do Fundo Constitucional do Norte (FNO) para que, por exemplo, o produtor venda o gado e minimize os prejuízos.

O superintendente entende que essa ferramenta, com carência de dois anos, pode viabilizar a sobrevida do produtor até que um novo ciclo de alta da arroba reinicie.

Quando a conduta da principal instituição financeira de fomento ao desenvolvimento regional é protocolar, é preciso apelar para articulação política. E é isso o que tem acontecido durante toda a semana. Na manhã desta sexta-feira, 15, pecuaristas, representantes de bancos públicos, gestores estaduais e o presidente da Comissão de Agricultura e Pecuária do Senado, senador Alan Rick (UB/AC), debatem o cenário de crise do setor na sede da Federação da Agricultura e Pecuária do Acre.

No encontro com os pecuaristas, o senador vai uma estratégia dividida em duas frentes de trabalho: emergencial e estruturante. “Temos que alterar a legislação e apresentarmos uma situação que ofereça mais segurança ao pequeno produtor de carne para um cenário que é cíclico. Sabemos que o cenário de baixa da arroba virá”, antecipa o senador, sugerindo o que pode ser feito de estruturante. “Na frente estrutural, não tem jeito, é repactuar com as instituições financeiras. É o que tem que ser feito de forma urgente. Por isso, os bancos neste debate”.

O senador assegurou que o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, está ciente do problema acreano e designou o secretário executivo do ministério, Irajá Rezende, para discutir a situação e as providências institucionais possíveis.

FAEAC defende prorrogação de dois anos

O presidente da Federação de Agricultura e Pecuária do Acre, Assuero Veronez, defende que os bancos públicos prorroguem o pagamento das dívidas por dois anos. “Quando o pequeno produtor está inadimplente, tudo dificulta”, avalia. “As pessoas podem ter a noção equivocada de que o pecuarista não precisa de apoio. O grande, talvez, não precise tanto, mas o pequeno é claro que precisa. E o pequeno, neste momento, está muito vulnerável”.

As reações estruturais para resolução do problema, de acordo com o presidente da Faeac, podem ser feitas via Medida Provisória ou por meio de um projeto de lei. “Algum mecanismo legal precisa ser criado diante de um problema que, mais dia menos dia, virá novamente”.

O que a Faeac apresentará na mesa de proposta desta sexta-feira é a repactuação de dois anos para o pequeno produtor que, atualmente, está se desfazendo dos bezerros e das matrizes. “Para o produtor que tem mais capital é um momento estratégico para comprar bezerro muito barato”, calcula Veronez.

“Um bezerro ser vendido a R$ 700, R$ 800 não têm condições”

Quando se fala em “pequeno produtor de carne” no Acre, poucos exemplos são tão representativos quanto o de “Neuquide” (na foto, o de chapéu) e José Maria. Propriedades com áreas pequenas, plantel modesto, mão de obra familiar. A reportagem encontrou a dupla na sede do Sindicato dos Trabalhadores Extrativistas e Assemelhados do Acre na ensolarada manhã de terça-feira.

Francisco Alves da Silva, mais conhecido como “Neuquide”. É preciso falar mais alto do que o normal com ele, devido a uma surdez parcial, fruto de 87 anos dedicados à extração de seringa, lavoura e, claro, gado. “Neuquide” nasceu no Ceará, no município de Serra do Pereira. Chegou ao Acre em 1957.

Em 1994, se estabeleceu em uma propriedade de 100 hectares no Ramal do Centrinho, na Transacreana. “Minha propriedade já foi campeã na produção de legume”, orgulha-se. “A gente sempre teve um gadinho. Coisa pouca. Uma segurança para hora do aperreio. Mas hoje nem isso está dando mais porque um bezerro ser vendido a setecentos, oitocentos reais… não tem condições”.

José Maria de Assis, 53 anos, é de fala mais direta. É proprietário da Colônia Esperança, localizada no Km 9 da Estrada do Barro Alto, também na região da Transacreana. A propriedade rural de 30 hectares é titulada. José Maria é o único que trabalha na propriedade. Cuida de 97 cabeças de gado e, assim como o colega “Neuquide”, também está desanimado com o mercado do Boi Gordo. “Não tem condições de vendermos um bezerro por menos de mil reais que é o que está sendo oferecido agora”, reclama. “Ano passado estavam pagando ao menos mil trezentos e cinquenta reais. Mas menos de mil é desrespeito demais”.

Tanto “Neuquide” quanto José Maria não estão entre os que devem aos bancos por conta da pecuária. Eles são ainda mais vulneráveis porque estão sujeitos à ação dos “atravessadores”. A dupla tem no pouco gado do modesto pasto uma espécie de poupança para os imprevistos da rotina da família.

Comércio especializado já sente efeitos da crise e não descarta demissões

Dois empresários do comércio especializado no mercado da pecuária foram ouvidos pelo ac24horas. Nenhum dos dois quis ser identificado “para não expor o comprador”. Ambos estão vendo os clientes sumirem dos balcões das lojas.

“O momento é de estagnação”, avalia o dono de um dos empreendimentos melhor estruturado. “Os clientes que ainda estão comprando estão levando o mínimo”. O empresário calcula que a crise já pode ser contabilizada. “Já comprometeu pelo menos 30% do faturamento das lojas do setor”.

Outro proprietário compara esta crise com a de 2006. “O produtor não está tendo como investir e se o movimento continuar assim”, disse, apontando para a loja vazia com funcionários conversando, “eu não descarto demissões”.

Por que o preço da arroba está em baixa?

Para responder a esta pergunta é preciso tratar do conceito de “Ciclo Pecuário”. Para simplificar a explicação e facilitar o entendimento, é possível dizer que trata-se de um “ciclo de preços”. Esse ciclo de preços leva em conta fatores como, inflação, custos de produção e o mercado externo. Nas falas dos pecuaristas e gestores, a percepção de que o preço da arroba voltará a subir daqui a um tempo e voltará a cair dá dimensão que todos têm dimensão desse sobe e desce. E é isto o que se explicará agora.

Oferta e Procura

Teoricamente, o ciclo obedece a uma lei econômica muito popular: a Lei da Oferta e da Procura (Demanda). É o manejo desses dois fatores, a “oferta” da carne e a “demanda” da carne que explica o sobe e desce do preço da arroba.

Para entender o porquê de o atual cenário ser tão grave é preciso entender como estava o mercado brasileiro em 2018. E para entender como estava o mercado em 2018 é preciso lembrar que a China teve um surto de febre suína africana. Naquele ano, a arroba também não estava com preço bom. Mas o problema na China reanimou o mercado por aqui porque foi necessário substituir a proteína e aumentar a importação do Brasil.

Um novo ciclo começou. A carne como uma commoditie ficou valorizada no mercado. Associado a isto, veio a pandemia. Por isso, muitos produtores do Brasil investiram, endividaram-se. Os anos de 2019, 2020, 2021, 2022 foram de muita valorização da carne.

Quando a arroba está valorizada; quando a carne está valorizada no mercado, o produtor segura as fêmeas no pasto: mais fêmeas é segurança de que o produtor vai ter mais gado no pasto em um mercado que está valorizando aquele produto. Por isso, os economistas que avaliam o mercado dizem que, no mercado do Boi Gordo, a demanda é mais lenta e a oferta é mais ágil.

Com maior capacidade produtiva, com maior oferta do produto no mercado, o preço tende a estagnar. O momento seguinte é de crise, quando o mercado do Boi Gordo varia abaixo da inflação. Falando mais simples: abaixo dos custos de produção. É quando produzir boi não cobre os custos. É justamente este momento que o segmento vive.

70% de abate de fêmeas. Há uma matemática básica do produtor em um cenário de normalidade: do total de abate, algo em torno de 40% são fêmeas. No período de alta do preço da arroba, a quantidade de fêmeas abatidas cai para algo entre 25% a 27%. No atual cenário, o abate de fêmeas está entre 60% e 70%.

“É preciso política pública”, afirma Orlando Sabino

O economista e professor aposentado da Universidade Federal do Acre, fez uma breve avaliação de cenário de crise no mercado do Boi Gordo. Para ele, está faltando política pública para o pequeno produtor de carne. Os principais trechos da entrevista estão a seguir:

Professor, vou começar fazendo uma provocação. E aquela história de “Estado Mínimo”, de intervenção mínima do Estado na economia… é retórica?

Orlando Sabino – É retórica. em um país tão desigual, em um lugar ainda mais desigual como o Acre, se não houver o Estado em todos os campos (e não apenas na pecuária) você tem a barbárie.

O que esta crise do Boi Gordo tem de diferente?

Orlando Sabino – Trata-se de uma cadeia produtiva realmente complexa. O primeiro aspecto que precisa ser avaliado é o cenário internacional. É preciso avaliar como está o contexto no nosso principal cliente, a China, por exemplo. A segunda questão a ser avaliada guarda relação com os oligopólios dos frigoríficos. Não é apenas a Lei da Oferta e da Procura. Na verdade, nesse mercado oligopolizado dos frigoríficos, essa lei não funciona. A industrialização está muito concentrada, inclusive aqui no Acre.

Por que o preço não cai para o consumidor no açougue?

Orlando Sabino – Sobretudo, justamente, por causa do oligopólio. E outra coisa que influencia é o cenário internacional também. Olhe… tivemos períodos em que o rebanho era menor, mas o abate foi maior.

Professor, os bancos públicos serão pressionados para repactuar dívidas. A articulação política vai ser eficaz?

Orlando Sabino – Claro que não vai ser eficaz. Os bancos têm metas a cumprir. A pecuária é um segmento organizado. O que precisa é criar normas.

Como construir um ambiente institucional que responda a esse cenário que é sabido que se repitirá?

Orlando Sabino – Esse é um problema. O pequeno produtor precisa de política pública. É papel do Estado. A liquidez do pequeno produtor é a pecuária. É preciso que o pequeno produtor crie vínculo direto com a indústria. Tem que ter Estado fazendo política pública para quem precisa dela.

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