Missionário norte-americano é expulso após invadir terras indígenas no Acre

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Um missionário norte-americano de 30 anos invadiu uma terra indígena no Acre para iniciar um processo de doutrinação evangélica forçada com os integrantes da etnia Madija – um povo considerado de recente contato. Anthony Paul Goddard viajou ao lado da sua esposa, também americana, um filho pequeno e um empregado brasileiro.

Mesmo sem autorização das lideranças locais ou mesmo da Funai, Goddard construiu, em março, uma casa que ocupa 96 metros quadrados e passou a morar dentro da terra indígena Alto Rio Purus, na aldeia Santo Amaro, próximo a foz do Rio Chandless, que corta o estado. E ficou até maio, quando, via ofício escrito pelos seus advogados, comunicou sua saída à Funai. A casa permanece no local.

Goddard nasceu em Ontário, no Canadá, e tem cidadania dos EUA. Ele integra o grupo filantrópico Missões Novas Tribos do Brasil, a NMTB, uma subsidiária da antiga New Tribes Mission – fundada em 1942, em Sanford, na Flórida.

De orientação protestante luterana, as duas organizações buscam converter para o cristianismo povos de várias partes do mundo.  “Mais de 6.000 povos do mundo ainda não foram alcançados. Estamos bem com isso?”, questiona a instituição na página em inglês no Instagram. Um de seus principais objetivos é ensinar, na língua de origem, as lições da bíblia aos alvos das missões. “Precisamos de pessoas treinadas objetivamente para plantar uma igreja com o evangelho pregado na língua daquele povo”, disse o presidente da organização no Brasil, Edward Gomes da Luz, em um vídeo postado para atrair novos evangelizadores.

No site americano, a organização não esconde sua intolerância religiosa, ao afirmar que há “um só Deus” e que “é responsabilidade da igreja glorificar Cristo pregando o evangelho ao mundo e fazendo discípulos em todas as nações”.

Após uma série de denúncias de pedofilia e abusos sexuais em países onde atua, em 2017, a New Tribes Mission mudou o nome para Ethnos 360. A organização brasileira continua com o mesmo nome.

Passe livre para o Brasil

O Intercept mapeou a trajetória de Paul Goddard no Brasil. Formado em estudos bíblicos pela Ethnos 360 Bible Institute, ele foi enviado à América do Sul pela Igreja Gospel Grace, da Virgínia, nos EUA.

Seu primeiro registro de entrada no país foi com um visto temporário, partindo da Flórida e chegando em Manaus. Em 2020, deixou o Brasil – saindo de Goiás e voltando aos EUA, novamente pela Virginia. Retornaria um ano depois, vindo novamente da Flórida e pousando em Brasília. No ano passado, mais um registro de chegada: pousou em Rio Branco, no Acre, após decolar da Carolina do Sul.

Em fevereiro de 2022, no último ano do governo de Jair Bolsonaro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública concedeu a Goddard a autorização de residir no Brasil por prazo indeterminado.

Rachelle Goddard, esposa de Paul, também é uma missionária. Seus pais fazem parte da Ethnos 360. Ela veio ao Brasil e, inicialmente, passou a morar em Porto Velho, Rondônia – conforme mostra sua carteira de motorista, obtida no ano de 2012.

Este ano, ao descobrir que Goddard e sua família estavam vivendo na terra indígena Madja, a Funai solicitou apoio da Superintendência da Regional da Polícia Federal do Acre para retirá-los do local. O órgão indigenista se apoiou em uma instrução normativa de 1994, que diz que missões religiosas só poderiam atuar em áreas indígenas se tiverem decisão favorável de um antropólogo – o que não era o caso de Goddard.

Eu procurei os advogados do missionário por e-mail, mas eles não responderam nossos questionamentos. A Funai também foi procurada e informou que enviaria uma resposta – o que acabou não acontecendo.

Já a MTNB, por nota, disse que “é uma instituição de longa data, que busca desempenhar um papel significativo através da atuação eclesiástica”. A organização, no entanto, não respondeu às minhas perguntas específicas sobre se Goddard havia sido orientado a invadir a área pela própria MNTB – tampouco se, após ser notificado pela Funai, teria sido expulso ou punido internamente pela missão evangélica.

A organização se limitou a dizer que é compromisso “instruir rigorosamente garantindo que atuem sempre dentro dos limites legais, apoiados pelos ensinamentos da Bíblia Sagrada, que preceitua a sujeição às autoridades governamentais”.

Contato com brancos elevou suicídio

Em 2017, o Ministério Público Federal encomendou a produção de um laudo antropológico para investigar um problema grave que vinha acometendo a etnia Madija: o alto número de suicídios, sobretudo entre homens, de 16 a 28 anos.

De acordo com o relatório, ao qual o Intercept teve acesso, de dezembro de 2015 até fevereiro de 2017, “foram identificados doze casos de suicídio entre os Madija do Alto Purus”. E entre fevereiro e novembro de 2017, foram relatados mais dois casos, um provavelmente em março e outro em outubro, “ambos entre indígenas do sexo masculino”.

O laudo tenta não ser conclusivo quanto uma “explicação única, consensual e homogênea” para os suicídios recorrentes, mas aponta algumas hipóteses, entre elas “o uso de interpretações provenientes do cristianismo, devido ao processo de conversão evangélica em curso nas aldeias do Alto Purus”.

O relatório mostrou que as mortes por enforcamento – o método mais usado – são “mais comum nas aldeias com maior presença evangélica” e estão relacionadas uma crença trazida pelo cristianismo, a partir de uma doença relacionada ao “demônio”, ao “satanás” ou ao “capeta”.

“A presença missionária por si só já gera turbulências e tensões, porque ela interfere nas dinâmicas de sociabilidade. Primeiro, porque ela instala um conflito. Você tem aqueles que aderem ao discurso pregado e aqueles que resistem e mantém as práticas tradicionais. Eu observei que nas aldeias de contato evangélico com mais adesão, a autoridade religiosa, o pajé, era mais confrontado com sua posição questionada pelos demais”, disse ao Intercept o antropólogo Pedro Moutinho, que assina o laudo do MPF.

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