Brasil celebra 1º Dia dos Povos Indígenas após mudança em lei; entenda a diferença entre índio e indígena

Pela primeira vez, o Brasil celebra neste 19 de abril o “Dia dos Povos Indígenas” – e não mais o “Dia do Índio”, como a data era conhecida até o ano passado.

A mudança foi oficializada em julho de 2022 com a aprovação da Lei 14.402.

Motivo: A palavra “índio” é considerada problemática por ser um termo genérico e não considerar a diversidade dos povos indígenas. (Veja mais abaixo.)

Há anos, defensores das causas indígenas já argumentavam que a data, que marca a luta dos povos originários pela sobrevivência desde a colonização do Brasil até os genocídios modernos, deveria ser chamada de “Dia dos Povos Indígenas”.

Márcia Mura, doutora em História Social pela USP e integrante do povo Mura, de Rondônia. — Foto: Arquivo pessoal

De acordo com a professora e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) Márcia Mura, a alteração era necessária para refletir as ideias e lutas das diversas sociedades indígenas.

Índio é um termo genérico, que não considera as especificidades que existem entre os povos indígenas, como as especificidades linguísticas, culturais e mesmo a especificidade de tempo de contato com a sociedade não indígena. — Márcia Mura, doutora em História Social pela USP

Segundo Mura, o termo índio reproduz a visão do colonizador que remete à ideia eurocêntrica de que os indígenas são atrasados e iguais, desconsiderando as diferenças linguísticas e culturais.

Em contrapartida, “indígena” é uma palavra que significa “natural do lugar em que vive”. O termo exprime que cada povo, de onde quer que seja, é único.

O escritor indígena, doutor em educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos Daniel Munduruku também acredita que a palavra “índio” “esconde toda a diversidade dos povos indígenas”.

Daniel Munduruku, escritor indígena, doutor em educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Linguística — Foto: Divulgação

“A palavra ‘indígena’ diz muito mais a nosso respeito do que a palavra ‘índio’. Indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros”, explicou o autor em entrevista à BBC News Brasil.
Munduruku pertence ao povo indígena de mesmo nome, que está situado em regiões do Pará, Amazonas e Mato Grosso.

Individualidade dos povos
A mestra em Linguística Aplicada pela PUC-SP Maria Vitória Berlink defende que o movimento de adoção ao termo “indígena” é significante porque representa a exposição das individualidades dos povos.

“Os colonizadores portugueses e espanhóis, principalmente, usavam a palavra ‘índio’ para qualquer povo originário que encontravam pelo território. É um termo raso, que não considera qualquer traço individual destes povos. O que estes mesmos povos tentam fazer agora é tomar para si o direito de se definirem e de mostrar que são mais do que o termo exprime”, explica.

Para além da nomenclatura, Márcia Mura ressalta a necessidade de respeitar a identidade cultural individual de cada povo e tratar as etnias pelo nome.

“Quando dizemos que não somos índios, queremos dizer que somos Mura, Uruéu-Au-Au, Guarasugwe, todos habitantes do território Pindorama, que é como os Tupinambá chamam o que os colonizadores deram o nome de Brasil, mas diferentes”.

O debate sobre como os não indígenas devem se referir aos povos originários acontece entre os próprios povos, e a professora diz que há quem se conforme com o uso do termo cravado pelos espanhóis.

“É preciso lembrar que muitos povos sofreram tentativa de apagamento desde a chegada dos colonizadores. Tentaram apagar nossas línguas, nossas culturas e nossas memórias, e deixaram para nós este termo cheio de estereótipos”, lamenta.

Dia para reivindicar e não comemorar
Apesar da ideia de que o dia 19 de abril é um dia para celebrar os povos indígenas, Márcia Mura defende que não é de comemoração, mas de reivindicação.

“Não temos o que comemorar, porque ainda precisamos reivindicar e pautar nossas lutas. Lutamos todos os dias pelo nosso território, pela nossa cultura e pelo direito de viver como vivemos, quando existe uma sociedade que está nos matando pouco a pouco”.

De janeiro a dezembro de 2022, o acumulado de alertas de desmatamento na Amazônia Legal foi de 10.267 km², segundo dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Essa foi a pior marca da série histórica anual do Deter, o sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real do instituto.

“Estamos perdendo nossas terras para estradas, hidrelétricas, termelétricas, pastos e para a mineração ilegal. Não podemos comemorar enquanto tentamos sobreviver”, diz a professora. Mas ela reforça que a floresta não é o único lugar de onde os indígenas resistem.

“Estamos em diferentes contextos. No interior da floresta, nas margens dos rios e dos lagos, mas também na cidade, em contexto urbano, além do território demarcado oficialmente como território indígena”.
Márcia Mura enfatiza o direito de demarcação dos territórios dos povos indígenas. Lembra também que todo território nacional é indígena e que o cuidado com a terra é de responsabilidade de todos.

“Os povos cuidam da floresta e dos rios, mas os não indígenas também precisam cuidar. Eles também vão ser afetados se faltar chuva, se os biomas forem destruídos. Todos os biomas são importantes e são ligados aos outros. Tudo está interligado e nós estamos ligados a este ambiente.
— Márcia Mura