Com início no interior de São Paulo, a BR-364 é uma rodovia que cruza diagonalmente o país e se estende até o norte do estado do Acre, onde termina diante de uma muralha verde de floresta, impenetrável graças ao status de proteção do Parque Nacional da Serra do Divisor. A ideia de cortar o parque ao meio para prolongar a estrada até a fronteira com o Peru existe desde o nascimento da área protegida, em 1989, e, com a composição atual do governo favorável à flexibilização cada vez maior da proteção ambiental e ao discurso desenvolvimentista, tem encontrado solo fértil para avançar. No início de setembro, um ofício do diretor de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade (Dibio) do ICMBio, o Tenente Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Marcos Aurélio Venâncio, deu sinal verde para começarem os estudos para viabilizar o licenciamento ambiental da obra.
“Informamos que a manifestação deste ICMBio quanto à compatibilidade do empreendimento com o Parque Nacional da Serra do Divisor será dada no âmbito do licenciamento e com fundamento no estudo ambiental a ser apresentado por esse órgão licenciador para o procedimento de autorização deste ICMBio, conforme preceituado pela Resolução Conama n° 428/2010 e pela IN Conjunta Ibama/ICMBio n° 08/2019”, escreve o chefe da Dibio no ofício ao qual ((o))eco teve acesso, enviado no dia 3 de setembro para o diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, Jônatas Souza da Trindade.
Com isso, a primeira porteira está aberta: o ICMBio disse sim e deu sinal verde para o Ibama dar início ao processo de licenciamento ambiental da abertura de 152 quilômetros da BR-364. Desses, um trecho de 22 quilômetros cortaria ao meio os 837,5 mil hectares do parque para conectar o município de Mâncio Lima, no Acre, até o lado peruano. Da fronteira, o objetivo seria estender a estrada até a cidade peruana de Pucallpa, para se tornar uma nova rota de escoamento da produção brasileira para o Oceano Pacífico, como defende o governo, à revelia da já existente Estrada do Pacífico que conecta a capital, Rio Branco, ao Peru. Além disso, entre a fronteira dos países e Pucallpa, existem outros 103 quilômetros de Floresta Amazônica que cabem ao governo peruano “rasgar ao meio” para efetivar a conexão com o lado brasileiro.
((o))eco procurou a assessoria de comunicação do ICMBio em busca de esclarecimentos sobre a decisão do órgão com relação ao projeto da estrada e os possíveis impactos que a mesma poderia ter sobre a unidade de conservação, mas não recebeu nenhuma resposta até o fechamento desta edição.
A história por trás da autorização para estrada não é de hoje, entretanto, e começa no próprio decreto de criação do Parque Nacional da Serra do Divisor, onde foi inserido um artigo que estabelece que: “fica autorizada a implantação futura do trecho da BR-364 que corta os limites deste Parque Nacional, devendo ser observadas, para este fim, todas as medidas de proteção ambiental e compatibilização do traçado com as características naturais da área” (Art. 3º Decreto nº 97.839/1989).
Onze anos depois, em 2000, o cenário legislativo de todas as unidades de conservação brasileiras ganhou uma base comum de regras com a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). O sistema dividiu as unidades em dois grupos, as de uso sustentável e de proteção integral, e a categoria de parque nacional passou a integrar esta última. As normas para áreas de proteção integral estabelecem maiores restrições ao uso e admitem apenas o uso indireto dos seus recursos naturais. Uma estrada, portanto, estaria fora de cogitação dentro de uma unidade de conservação deste tipo.
Daí nasceu o impasse jurídico sobre qual regra valeria: a lei geral do SNUC ou o próprio decreto de criação do Parque Nacional da Serra do Divisor, que previa a rodovia no meio do parque.
No dia 31 de agosto deste ano, em resposta aos dilemas jurídicos, a Procuradoria Federal Especializada da Advocacia-Geral da União (AGU), enviou um parecer no qual indica que caberia ao ICMBio a decisão sobre a abertura do processo de licenciamento ambiental para estrada no parque.
O texto ressalta a peculiaridade do caso do Parque Nacional da Serra do Divisor diante da autorização expressa no seu ato de criação, que contraria o disposto no SNUC sobre unidades de conservação de proteção integral, nas quais o empreendimento rodoviário seria incompatível com a finalidade protetiva da área.
“Em que pese a incompatibilidade normativa atual entre o Decreto de criação do Parque Nacional e a Lei do SNUC, nos parece que o licenciamento ambiental da rodovia encontra possibilidade de ser autorizado, dependendo apenas de avaliação técnica a cargo do órgão/entidade gestor responsável pela administração da unidade de conservação, de modo a poder atestar-se a observância, para este fim, de todas as medidas de proteção ambiental e a compatibilização do traçado com as características naturais da área”, afirma no parecer o procurador federal Jamerson Vieira. “Portanto, no caso concreto compete ao ICMBio avaliar a admissão e compatibilidade do empreendimento/atividade rodoviário, de acordo com os objetivos ambientais protetivos da unidade de conservação federal afetada e as previsões constantes do seu Plano de Manejo, com fundamento em bases técnicas, e tendo em conta as estratégias de gestão da Unidade, sopesando os impactos ambientais e seu contingenciamento”, acrescenta.
Apenas quatro dias depois do parecer do procurador, veio a resposta do ICMBio e o sinal verde para o processo de licenciamento ambiental da rodovia BR-364.
Com isso, a etapa que deve ser cumprida agora é a de elaboração de um estudo com os impactos ambientais que seriam causados pelo empreendimento. A autorização da licença caberá então ao Ibama e, novamente, ao ICMBio, conforme estabelecem a Instrução Normativa Conjunta nº8/2019 e a Resolução nº428/2010 do Conama, por se tratar de uma unidade de conservação federal.
Além do Parque Nacional da Serra do Divisor, a extensão da BR-364 terá às margens do seu caminho três Terras Indígenas: a dos Nukini (onde vivem os povos Nukini), a Jaminawa do Igarapé Preto (onde vivem os Yaminawá) e a Poyanawa (habitada pelos Puyanawa).
Em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 6.024/2019 prevê a recategorização do Parque Nacional da Serra do Divisor em uma Área de Proteção Ambiental (APA), de uso sustentável e considerada o tipo de unidade de conservação mais permissiva à exploração dos recursos naturais.
O PL, de autoria da deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), aguarda parecer do relator na Comissão de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia (CINDRA) para avançar no Congresso.
Em sua justificativa, a deputada afirma que a região da Serra do Divisor é a única do estado “que possui rochas que podem ser extraídas e utilizadas na construção civil, de maneira a fomentar o desenvolvimento econômico do estado e baratear as obras públicas que o povo do estado tanto necessita” e reclama que o status de unidade de conservação de proteção “impede qualquer tipo de exploração econômica das riquezas ali presentes” o que, segundo ela, “vai de encontro aos interesses e necessidades do povo acreano”.