Fazenda do apresentador de TV no Acre já pertenceu a senador biônico e a grupo de empresários de Londrina (PR), capitaneado pelo dono do extinto Bamerindus; povos originários contam que, durante a ditadura, foram escravizados por grileiros paranaenses
As duas fazendas que o empresário e apresentador de televisão Carlos Roberto Massa, conhecido como Ratinho, possui em Tarauacá (AC), a pouco mais de 400 quilômetros de Rio Branco, foram adquiridas junto à Companhia Paranaense de Colonização Agropecuária e Industrial do Acre (Paranacre). Indígenas e seringueiros denunciam que elas são fruto de um processo de grilagem e exploração de mão de obra.
As propriedades rurais são parte de um verdadeiro império do agro. Elas somam juntas 175,3 mil hectares — duas vezes a área da Madeira, região autônoma de Portugal — e ficam às margens da BR-364, numa área de notória tensão indígena e de disputas com posseiros, que remontam aos tempos da ditadura iniciada em 1964.
O site De Olho nos Ruralistas começou a retratar ontem a face agropecuária do empresário. O observatório publica a série de reportagens em um momento que ele acena com a aceleração de seus investimentos na Amazônia. Com direito a uma série de reportagens no SBT sobre o Acre, emissora onde ele trabalha há décadas.
“COMPRARAM 500 MIL HECTARES COM OS ÍNDIOS JUNTO”, DIZ CACIQUE
Em 2002, o comunicador pagou por volta de R$ 330 mil ao grupo de empresários de Londrina (PR), donos do Café Cacique, da Viação Garcia e do Bamerindus. As glebas, denominadas de Paranacre A e Paranacre B, em referência à companhia, estão até hoje registradas em nome da Radan Administração e Participação Ltda, com sede em Curitiba e cujo sócio-administrador é o pecuarista Dante Luiz Franceschi.
Em entrevista a Amaury Júnior, da Band, em 2018, Ratinho comentou que a área tem na verdade 200 mil hectares e que ele planeja explorar madeira no local.
A diferença quanto ao tamanho se dá justamente por conta de embates com populações tradicionais. O imóvel é vizinho da Terra Indígena (TI) Rio Gregório, habitada por moradores de sete aldeias das etnias Yawanawá, Kaxinawá e Katukina-Pano e demarcada inicialmente com perímetros errados.
Na antiga demarcação não estavam incluídos as cabeceiras e os afluentes dos principais rios e igarapés da região, lugares de caçadas tradicionais e cemitérios sagrados que guardam os corpos de importantes líderes.
“Essa região nos pertence desde os tempos imemoriais da ocupação humana”, resume o cacique Biraci Brasil Yawanawá. Nos anos de chumbo, como parte de sua “política desenvolvimentista”, o regime ofereceu uma série de incentivos fiscais para que grupos do centro-sul do país, chamados pelos acreanos de “paulistas”, comprassem terras na Amazônia. A ideia era que eles capitaneassem uma ampla transformação da estrutura fundiária e das atividades produtivas.
O comerciante Altevir Leal, que depois se tornou senador biônico pela Arena, partido de sustentação da ditadura, havia se apossado de mais de sessenta seringais no município e foi um dos vendedores. “Ele trouxe várias instituições pro Acre e se apropriou de muitas terras”, relata o cacique. “Trouxe todo o sistema de Justiça, as instituições do governo federal, e legalizou”.
Leal comercializou a maior parte dos terrenos para os empresários paranaenses, antes que eles chegassem a Ratinho. Alguns imóveis passaram também pelas mãos de Agapito Lemos. Muitos foram desmembrados e revendidos. “Compraram 500 e poucos mil hectares de terra com os índios junto”, disse Biraci Brasil, sobre a Paranacre. “Chegaram e falaram que os índios não podiam mais plantar, caçar, nem pescar”, completou.
“ESTAMOS AQUI SERVINDO DE ESCRAVOS”, CONTOU INDÍGENA
O cacique deixou Tarauacá em 1980, aos 17 anos, para estudar em Rio Branco, e só retornou em 1992, com o desafio de liderar e reorganizar os Yawanawá, em defesa do território. Por muito tempo, os povos originários foram explorados pelos brancos e intimidados a não mais falarem a língua tradicional, praticarem rituais sagrados e exercerem seus costumes, como mostra depoimento de Raimundo Luís Iauanauá ao jornal Varadouro, de agosto de 1981:
— Quando nós fala daqui do nosso terreno, os gerentes da Paranacre diz que nós não tem terra aqui. Comparação: se tem gado da firma invadindo nosso roçado e nós fala pra ele que tem gado invadindo o nosso lado, acabando com nosso roçado, ele vai e diz: “Você aqui não tem terreno. Tudo aqui é da firma. A terra é da firma”. Então nós não tem direito à nossa terra? Nós tamos aqui servindo de escravos da Paranacre.
O trecho consta de um relatório de identificação do professor Marcelo Piedrafita Iglesias, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No documento, ele relata que os “paulistas” interessados em regularizar suas imensas propriedades cadastravam-se no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por estimativa, apresentando extensões muitas vezes superdimensionadas.
“Estas terras cadastradas no Incra levavam em conta as enormes extensões dos fundos dos seringais adquiridos pela Paranacre, algumas declaradas ‘devolutas’ pelas próprias escrituras, outras de propriedade de nomes já falecidos, de herdeiros ou de ‘quem for de direito’”, destaca. O caso, acrescenta, foi um dos mais discutidos na época “como indicativo dos fortes processos de grilagem que estavam acontecendo em muitos municípios”.
Conforme o antropólogo, quando não optavam pela realização de desmatamentos para a abertura de fazendas de gado, os empresários do centro-sul colocavam seus próprios gerentes para movimentar os barracões ou, mais frequentemente, arrendavam terrenos.
Nesta última situação, como consequência do acordo entre arrendatários e bancos estatais, o seringueiro (indígena ou não indígena) continuava não sendo o dono da borracha que produzia, porque ela já estava empenhada como garantia da safra de seu patrão. Segundo Inglesias, a Paranacre controlava as transações comerciais realizadas por seus fregueses com borracha e mercadorias, “contando, em diversas oportunidades, com apoio policial para alcançar seus objetivos”.
Ainda de acordo com ele, por volta de 1985 a empresa conseguiu regularizar as cadeias dominais desses seringais junto ao Incra. “Fizeram a descriminação das terras e eles perderam uma parte, que eram as terras devolutas”, conta. “Com a falência dos seringais e da borracha, mantiveram representantes ali, com certo domínio, mas já sem nenhum investimento ou atividade expressiva”.
A Paranacre foi extinta oficialmente em 2004, por liquidação voluntária. Dentre seus donos estavam o pecuarista, banqueiro e político Jose Eduardo de Andrade Vieira (Bamerindus) e o empresário do setor de transportes José Paulo Garcia Pedriali (Viação Garcia), ambos já falecidos.
POVOS YAWANAWÁ LUTAM CONTRA PROJETO DE EXPLORAÇÃO
Em 2009, durante processo de revisão dos limites da TI, feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai), Carlos Massa “doou” cerca de 50 mil hectares reivindicados pelos indígenas. No ano seguinte, quando a Radan obteve dos governos federal e estadual licenciamento para exploração madeireira em 150 mil hectares na Floresta Estadual do Mogno, na margem esquerda da rodovia, os Yawanawá voltaram a protestar, ameaçando fechar a estrada. Eles se diziam desrespeitados pelo projeto de exploração, apresentado sem nenhum tipo de consulta prévia às comunidades.
“Quando eu soube dessa situação — o governador era o Jorge Viana —, falei que teríamos problemas, porque o Ratinho queria fazer um manejo, uma indústria de madeira”, comenta Biraci Brasil. “Ele ia promover violência e desmatamento; era um projeto grande, de 100 milhões de dólares”.
De acordo com o líder, houve uma negociação e um acordo, com a intermediação dos governos estadual e federal. “Particularmente, nós não tivemos nenhum conflito”, afirma. “Foi pela diplomacia”. O cacique se diz satisfeito com o desfecho. “Fomos o único povo indígena no Brasil que em 2003 conseguiu ampliar o território em quase 100%”. A nova aldeia foi batizada de Nova Esperança.
Atualmente, 560 pessoas vivem na TI Rio Gregório. De acordo com Iglesias, o governo do Estado prometeu assistência técnica para as pessoas que fossem até mais perto da estrada e houve um êxodo dos brancos de dentro da terra para a beira, o que acabou ajudando Ratinho. “O fato é que ele localmente nunca mexeu com nada”, comenta. “Nós só ouvimos na imprensa”, afirma, em relação às intenções de se explorar madeira nas fazendas.
Apesar do clima de diplomacia, o antropólogo Iglesisas considera a situação nebulosa e prevê conflitos, caso em algum momento o comunicador ou outros latifundiários decidam tirar a proposta do papel, “ainda que em moldes ditos sustentáveis”.
Procurada, a assessoria de Ratinho informou que, “por conta de vários fatores”, está com a agenda de imprensa “no vermelho” e ele “prefere não se manifestar sobre esse tema”. De Olho nos Ruralistas também contatou a assessoria de imprensa do Grupo Massa, presidido atualmente por Gabriel Massa, filho do apresentador, no dia 13, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem.
PROGRAMA DO RATINHO PREPARA SÉRIE DE REPORTAGENS SOBRE O ACRE
A equipe de reportagem do Programa do Ratinho, do SBT, está desde o início de julho gravando uma série de reportagens sobre o estado. A “Expedição Acre” deve ir ao ar na sexta-feira (23). Segundo o site oficial do governo do Acre, vai mostrar, entre outras questões, “o abacaxi gigante de Tarauacá, a cultura indígena do povo Huni Kuin e a extração de borracha em Xapuri”.
No último domingo (11), o governador Gladson Cameli (PP-AC) recebeu o jornalista Arthur Veríssimo e os diretores Valter Leite e Alessandro Almeida em seu gabinete, falou sobre o potencial turístico da região e fez um agradecimento público ao apresentador. “Nossa terra é muito linda”, afirmou. “Temos a Serra do Divisor, o Rio Croa, aldeias indígenas e tantos outros atrativos a oferecer aos nossos visitantes, sem contar a hospitalidade do povo acreano”.
Assim como Ratinho, Cameli é aliado do presidente Jair Bolsonaro. Ambos possuem em comum a ligação com emissoras de rádio e televisão. O governador é primo de James Cameli, filho do ex-governador Orleir Cameli e proprietário do Sistema Juruá de Comunicação, associado ao SBT.
No encontro, Valter Leite disse que o Executivo estadual ofereceu “apoio logístico” para a realização das gravações. “Essa ajuda foi muito importante para nós e gostaria de reconhecer toda a atenção dada à nossa equipe para a realização desse trabalho”.
Carlos Massa é dono de cinco emissoras de televisão, compradas do ex-governador do Paraná Paulo Pimentel e também afiliadas à rede de Silvio Santos. São elas: Iguaçu (Curitiba), Tibagi (Apucarana e Maringá), Guará (Francisco Beltrão e Ponta Grossa), Cidade (Londrina) e Naipi (Foz do Iguaçu).
Ele possui ainda mais de 50 emissoras de rádio, entre próprias e afiliadas, distribuidas pelas cinco regiões do país, além da produtora de eventos Massa Fun!. Em 2019, por exemplo, a Rede Massa adquiriu a frequência 92,9, que pertencia ao Grupo Estadão, em São Paulo, e em 2021 iniciou sua expansão para o Nordeste, em São Luís, com a frequência 98,5.