Música, cárcere e greve de fome

Por Ana Lemos Lovisaro

Ana Lemos Lovisaro

Mais uma notícia terrificante nos invade e estremece. A morte, por greve de fome, de integrantes de um grupo musical turco, veiculada pelo canal televisivo de notícias RaiNews24.

O início de tudo. Quatro amigos e então estudantes da Universidade de Marmara decidiram formar um grupo musical em 1985 chamado Grup Yorum, cujo significado na língua turca é comentário, porque as letras de suas músicas eram dirigidas ao compromisso com a democracia e com a liberdade de imprensa. Com 25 álbuns, mais de dois milhões de cópias vendidas, já não se apresentavam há anos, conforme noticiado pelo quotidiano La Repubblica.

O Grup Yorum vinha enfrentando crescente repressão, com seus membros acusados de propaganda terrorista pela suposta afiliação ao Dhkp-c (sigla turca para Devrimci Halk Kurtuluş Partisi-Cephesi, ou seja, Frente revolucionária para a libertação do povo), organização considerada terrorista na Turquia. O último show ao vivo do grupo remonta a 2015, antes de ser definitivamente impedido de tocar pelo governo turco, apesar de os seus integrantes terem negado qualquer afiliação à organização política, consoante teor do artigo de Eliot Bates, publicado pela Oxford University Press.

Com base em tais acusações, o grupo musical foi proibido de realizar shows e parte de seus integrantes foi detida meses antes do início dos respectivos processos. Em maio passado, a vocalista Helin Bölek e o guitarrista İbrahim Gökçek iniciaram uma greve de fome para pedir: o fim das batidas policiais no Centro Cultural İdil – um local por eles reputado como ponto de encontro e de referência cultural do distrito de Okmeydanı Istambul, alvo contínuo de ataques policiais e de destruição de equipamentos e móveis; a remoção dos nomes dos integrantes do Grup Yorum das listas de procurados; a eliminação da proibição de o grupo musical apresentar-se em público; o cancelamento dos processos movidos contra os seus membros e a libertação de todos os integrantes atualmente presos, conforme notícia divulgada no site de informação político-internacional L’AntiDiplomatico.

Assim, dos integrantes do grupo musical submetidos ao cárcere, alguns deles permaneceram obstinadamente imbuídos dos valores em que acreditavam, decidindo por adotar a greve de fome em protesto contra o que alegavam ser uma ilegítima e injusta prisão. Após 288 dias sem comer, a cantora turca Helin Bölek morreu no início deste mês aos 28 anos de idade. E ao amanhecer de sexta-feira, 24 de abril, também morreu İbrahim Gökçek, após 297 dias sem alimentação, consoante veiculado pelo site de notícias DinamoPress.

Verdadeiras ou não as alegações de injustiça e de ilegitimidade das persecuções e prisões perpetradas contra os referidos musicistas, alguns fatos são certos: a notoriedade da instabilidade política na Turquia, a perseguição gigantesca pelo governo turco de seus opositores e da demissão de centenas de juízes naquele país, conforme consta na decisão colegiada da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal – STF, do dia 6 de agosto de 2019, que indeferiu o pedido de extradição n. 1578, formulado pelo governo da Turquia em face do empresário Ali Sipahi. O pedido de extradição estava baseado na acusação de que o empresário, naturalizado brasileiro, integraria organização terrorista. O Ministro relator da decisão explicitou, inclusive, a justificada dúvida quanto às garantias de que o extraditando (imputado) seria efetivamente submetido a um tribunal independente e imparcial, num quadro de normalidade institucional, a salvo de instabilidades e pressões, ao invés de responder perante um tribunal ou juízo de exceção.

Ainda sobre a criticidade no território Turco, um relatório do Conselho Nacional Forense italiano, intitulado: A perseguição em massa dos advogados na Turquia – prisões e condenações arbitrárias (2016-2020), trouxe à luz os casos de violência e repressão contra advogados. Muitos ameaçados, feridos e injustamente presos e condenados, apenas em razão de terem exercido escrupulosamente e autonomamente o mandato defensivo. Segundo consta no rapport, um grande número deles está preso nesse país e alguns condenados a longas penas ao final de julgamentos arbitrários levados a efeito sem qualquer observância das garantias processuais e de regras previstas em convenções internacionais.

Diante do quadro exposto, não seria desarrazoado acreditar que os musicistas perderam a liberdade, os sonhos e, por fim, a vida, em silencioso e excruciante protesto contra a opressão e a violação dos direitos humanos em seu país. E como bem costumava lembrar o economista e filósofo indiano Amartya Sen, os direitos humanos pertencem a cada um de nós enquanto pessoa, independentemente da cidadania e da legislação territorial. Portanto, direitos de inescusável observância por quem quer que seja e em qualquer lugar.

Não é à toa que a linguagem dos direitos humanos, a partir do texto da Declaração universal, é uma resposta reativa à memória recente de horror e de crueldade, cujo exemplo paradigmático resta sendo o holocausto do povo hebreu. Assim, tal linguagem é intrinsicamente conexa à memória do mal. E qualquer que seja a interpretação da manifestação nociva que campeia em nossos dias, o respeito pelos direitos humanos não poderia jamais claudicar, sob pena de não conseguirmos neutralizar a capacidade danosa ligada à nossa própria espécie e da qual é impossível se desfazer, pois, para eliminá-la, precisaríamos mudar de espécie, segundo já asseriu o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov.

Muitas coisas horríveis vêm acontecendo aos olhos de todos, é parece que a cognição do mal há simplesmente precedência sobre a interpretação do bem. A minimização do sofrimento socialmente evitável parece ser preferível à maximização de uma boa ação. Deveríamos ficar preocupados com isso e não indiferentes, até porque sabedores de que o léxico dos direitos humanos, colocando acento sobre a inviolabilidade fundamental da pessoa, pressupõe que o reconhecimento devido à propriedade de prerrogativas morais consiste, justamente, no respeito aos confins desses apanágios naquele espaço de escolha que cada um pode fazer. Qualquer invasão a tais limites outra coisa não é senão a prática, o tratamento e a política da crueldade e da opressão.

Está mais do que na hora de se alcançar a consciência da necessidade de expor inequivocamente o próprio posicionamento e postura contestadora a anômalos exercícios de poder e de autoridade política. Os valores da democracia, da igualdade e do respeito pelos direitos humanos são primordiais para a consecução e manutenção da paz e de um viver digno. Da mesma forma, inexistirá paz e estabilidade enquanto houver opressão e repressão. Além disso, não encontra abrigo em um Estado democrático de direito a prevalência de um interesse individual em violação ao interesse de uma coletividade. Sem falar que é abominável a prisão ou a permanência nos cárceres de milhares de pessoas em razão de terem manifestado a própria forma de pensar. Infelizmente, tortura e prisão motivadas por questões políticas, muitas vezes sem julgamento, são ações corriqueiras, praticadas e toleradas mesmo em algumas nações consideradas “democráticas”.

A respeito, convém lembrar que em um dado momento, na década seguinte à queda do muro de Berlim, a democracia parecia ter ganhado lugar na história como uma forma política triunfante e indiscutível. Tal fenômeno, inclusive, foi identificado pelo cientista político Samuel Huntington como terceira onda de democratização que fizeram com que regimes ditatoriais e autoritários fossem substituídos por sistemas democráticos. Hoje, trinta anos depois da queda do muro, a sensação é de que a humanidade está caminhando aturdidamente em direção ao restabelecimento de regimes iliberais ou à transformação nocente da própria democracia.

E como exemplos de “democracias iliberais”, faz-se oportuno citar também a Hungria e a Polônia, onde existe um nítido controle político da magistratura. Controle esse alcançado com a vigorosa redução da idade para aposentadoria e que propiciou a renovação de mais de 2/3 de juízes em um curto espaço de tempo (6 meses), sobretudo das altas cortes, ao passo que a modalidade de nomeação dos juízes também foi alterada, de modo a sujeitá-los à influência do poder político mesmo em caso de seleção por concurso, já que o candidato proveniente do governo contaria com larga pontuação no certame. Acresça-se a isso o controle dos meios de comunicação público e privado, dada a aprovação e adoção de algumas leis voltadas a disciplinar a liberdade de informação e a regulamentar o sistema de serviços multimídia, os produtos de imprensa e de comunicação. Tudo agora submetido a uma Authority desprovida de composição pluralista que contemple as diversas orientações presentes na sociedade, a teor do artigo de Maria Angela Orlandi, publicado na Revista de Diritto pubblico comparato ed europeo.

Enfim, o horizonte cinzento é este. Vidas e sonhos estão sendo perdidos ou sacrificados desgraçadamente em “pseudodemocracias”. A partida, contudo, ainda está a decorrer, resta saber quem se esforçará mais para ganhar o jogo. Que os exemplos de países como a Turquia, a Hungria, a Polônia e tantos outros sirvam como alerta ao mundo inteiro em relação à causa democrática e de direitos humanos.

Ana Lemos Lovisaro é advogada e doutoranda na Università di Roma “Tor Vergata”