Tenho 54 anos e trabalho há mais de 30 na Policlínica Gemelli, o maior hospital de Roma. Setores inteiros foram fechados para reabrirem exclusivamente para pacientes com Covid-19. É uma coisa que se espalha cada vez mais, a cada dia são 300 mortos, e meus colegas não aguentam mais as escalas de trabalho massacrantes. A única medida que está dando certo é tomar decisões que impactem a curva do vírus. Foi colocado muito dinheiro na saúde para abrir UTI e hospitais novos, porém estamos em triagem de guerra. Se uma pessoa é muito idosa e grave, a gente deixa morrer. É preciso escolher, e não posso pegar vaga na UTI para alguém de 90 anos, com perspectiva de um ou dois anos de vida, e ignorar alguém de 60 anos, que tem perspectiva de 25. Todos os dias tenho visto isso. Ontem um senhor de 86 anos estava agonizando e acabou morrendo porque não havia lugar e possibilidade de salvá-lo. A situação dos leitos de UTI está quase em colapso. Fechamos as salas operatórias e não há mais cirurgias que não sejam urgentes. Todas as salas estão virando UTIs.
O Gemelli fica perto de onde morei quando criança e adolescente. Nos anos 1980, a aids e as drogas, principalmente heroína, foram uma praga aqui em Roma. Comecei a trabalhar naqueles que foram os primeiros anos da epidemia de HIV. Ninguém da comunidade médica entendia do combate, havia pouquíssima experiência, e me colocaram na linha de frente. Comecei a ver meus amigos de adolescência entrar no hospital cada vez mais fracos e doentes. Vi muitos deles morrer diante de mim. Nem os médicos sabiam como enfrentar. A única coisa diferente do Covid-19 é que a aids só era transmitida por meio de fluidos corporais — sêmen, sangue —, então foi muito menos restritivo à vida cotidiana. Mas foi difícil. Em meu setor oito pessoas morriam por dia. Ainda assim, nunca vi algo como está sendo o combate ao novo coronavírus.
A situação é muito difícil. As ruas estão totalmente vazias, e os transportes em escala reduzida, porque não há nem gente para ser transportada. Há um trem por hora, se muito. Os bares estão fechados e não há mais lugar para encontrar outras pessoas. Nos supermercados, apenas uma pessoa pode entrar de cada vez, com luvas e máscara. Se você é encontrado na rua sem justificativa, a polícia multa. Só permitem gente na rua por três razões: trabalhar em serviço essencial, encontrar parentes necessitados e ir ao mercado fazer compras. A gente tem de tomar cuidado com as pessoas idosas, porque são as mais fracas. Eu mesmo fico longe do meu pai. Quando fui levar compras para ele, fiquei a 3 metros de distância. Nestes dias, é melhor falar por telefone, já que temos tecnologia e podemos ver as pessoas queridas por vídeo. Tenho quatro filhos, cuidar da família nessa epidemia requer absoluto cuidado. Trabalho todos os dias, mas uso máscara e luvas. Falo com meus filhos à distância e não deixo se aproximarem. Isso está dando resultado. Essa doença não se transmite com roupas e contato físico, a não ser com as mãos, que são a coisa mais suja — já que as encostamos nas superfícies, nas catracas, nos outros. As mãos precisam ser lavadas várias vezes por dia e nunca encostadas na boca e nos olhos.
Hoje o governo adotou medidas que nunca vi serem tomadas em 54 anos de vida, bilhões de euros foram injetados na economia para sustentar a população, mas isso não vai adiantar se não agirmos com o protocolo sanitário de evitar contato com os outros. Somente ficar isolado resolve. Prevenimos a epidemia botando máscara e ficando longe uns dos outros, e se aproximando dos doentes apenas o necessário. Isso serve também para os colegas de trabalho. Até na pausa para o café estamos de máscara. Temos consciência de que essa é a única maneira de não levar o coronavírus para casa. Tive acesso aos dados de hoje (segunda-feira, 16 de março) e vi que houve uma leve diminuição dos mortos — 349, um pouco menos que ontem. Os novos casos também diminuíram.
A coisa mais importante que os brasileiros precisam saber é que é preciso ficar em casa e não entrar em contato com os outros. Caso encontrem alguém, fiquem a 1 metro ou 2 de distância. Estamos testando muitas pessoas, então já vimos que estamos com a taxa de mortalidade em torno de 5%. Primeiro era só com os idosos, mas o vírus está entrando em mutação e infectando crianças e jovens. Aqui já temos crianças infectadas, e o Estado não está mentindo. Estamos todos cientes do que está acontecendo. Ninguém está a salvo.
O mais importante é que o Estado mantenha a possibilidade de fazer compras e a capacidade de os supermercados estarem cheios de mercadorias. A logística do transporte de comida permanece ótima e ninguém sente falta de nada. O Estado precisa garantir cesta básica e comida para que todos sobrevivam.
É importante que os trabalhadores estejam em segurança, longe uns dos outros e usando máscara. Se vocês encontrarem alguém, não pode ter abraço e beijo. Tem de ficar longe porque cada um de nós pode ser um infectado assintomático. Vocês do Brasil devem dispensar os empregados e pagar suas diárias ou salários, porque é justo que também se cuidem. As escolas e universidades precisam ser fechadas imediatamente, e a iniciativa deve partir da população. No fundo, o vírus deixou os italianos com mais responsabilidade para que tudo aconteça da maneira certa. Em breve, como já ocorre em Madri, teremos o Exército na rua para que todos respeitem o decreto de não sair de casa.
Espero que o Brasil tenha sorte.
Revista Época